FAZER CIDADE
A
propósito da macro-exposição dos projectos do arqtº. Raúl.Hestnes.Ferreira no ISCTEque
visitei a 7 de fevereiro de 2006, sinto necessidade de voltar atrás quando
também eu trabalhei no GTH a desenhar espaços de jardim, integrada na equipe
por onde passaram alguns grandes arquitectos-paisagistas e arquitectos de hoje
que fizeram Cidade, tentando eu "acompanhá-los" ajardinando os
"espaços" por eles concebidos e honrar os colegas mais velhos que por
lá já tinham passado, o que abria para mim, ainda tão jovem, um mundo novo não
apenas de trabalho mas também de "olhar" a cidade e de participar na
sua construção pois que, do papel, se seguiu depressa a sua construção,
tendo-me sido muito grato, ainda, abrir pela primeira vez grandes covas para
plantar as árvores que ainda lá estão hoje tão velhas e sólidas como os
edifícios, numa área de cidade de grande qualidade de vida e de ambiente urbano
Nesses
anos 60 o país iniciava nova forma de fazer cidade em Olivais Norte e Sul, e
Chelas, planeada e desenhada não só a outra escala de intervenção no espaço
físico, mas com novo desenho de estruturação como se de "cidade nova"
se tratasse, moderna nos desenhos de estrutura entre eles o
"celular", como o de uma célula de ser vivo, que se introduzia quase
"clandestinamente" na cidade antiga de desenho
"tradicional", pese embora a diversidade que Lisboa pode oferecer e
de que Alfama é sempre excepção mas contudo sempre dentro da mesma "regra”
de construir habitar.
Que
surpreendente para mim, "novata" nas coisas dos jardins e da cidade,
e que passados tantos anos me é forçado reavivar, não por ser muito importante
o meu trabalho, mas ter sido esta exposição que, mais uma vez, me faz repensar
melhor cada "bocado" da cidade onde moro, com mais "um
olhar" e um referencial que passa pelo olhar do meu envelhecer em paralelo
com o da própria urbe e com contínuo feed-back como se eu me sentisse um bicho
que olha o seu habitat de que muito depende "qualquer bicho."
Assim
este recuo que faço permite-me não apenas avaliar a qualidade do que foi feito
nesse tempo e que é hoje referência de qualidade urbana e de dinâmica da
cidade, manifestada igualmente pela apropriação feita pelas várias gerações de
habitantes que conquistaram a “sua cidade”, o “seu bairro”, o “seuhabitar” e o
“seu viver.”
Estes
50 anos de cidade nova a que o tempo já deu "tempo histórico" desde o
tempo do risco dos esquissos até à existência da árvore que dá, pela sua
estatura, uma definição rigorosa do tempo de existência dessa realidade
"tijolo-árvore-habitar" - tempo vivo na natureza das coisas e do
lugar do homem.
Apetece-me
assim fazer este percurso emocional, não apenas sobre
este-bocado-de-cidade-também já velha, que faz contínuo edificado e contínuo
Humano com a cidade
histórica, integrando a natureza
viva, mas relacionando-a com a evolução da cidade-velha à qual esta foi
acrescentada permanecendo a matriz
de urbanidade em que é
visível a evolução da vida do betão-tijolo-árvore, mas que hoje poderá estar a
ser posta em causa pois que a evolução da cidade mais velha foi transformada e
transfigurada nem sempre da melhor forma sobretudo a partir dos anos 80 devido
a novos factores de evolução que a cidade teve de integrar, não apenas em
termos de crescimento demográfico que acompanhou a introdução do automóvel, tão
abruptamente, que levou a transformações globais por vezes tão drásticas e
brutais sobretudo nas grandes avenidas que de repente se transformaram em
auto-estradas urbanas, desumanizando o viver, mas contudo realidade com que a
cidade se teve de debater e tem que com ela viver e continuamente ajustar-se,
mas sem no entanto ter ainda encontrado compromisso de qualidade
Não
quero deambular muito mais por este tema em que o peão deixou de ter prioridade
para a ceder ao automóvel que também não só transtornou os velhos transportes
públicos tradicionais como o eléctrico , como obrigou ao "tapamento"
dos belos pavimentos das ruas em paralelepípedos de granito para que não lhe
caíssem os parafusos nem avariassem a suspensão, pavimento que era
semi-permeável e sem quase despesa de conservação e certamente sem causar
nenhuma poluição, como a que é hoje provocada pelos combustíveis fósseis
utilizados como energia-motor, acrescida aos detritos derivados do desgaste do
betuminoso com o atrito dos pneus que por sua vez se desgastam e tornaram a
atmosfera irrespirável todos eles detritos cancerígenos, para além de ter
alterado, irreversivelmente, o clima urbano que passou a ser mais quente e mais
seco, até porque a chuva quando cai já não encontra os pequenos espaços das
juntas das pedras a que estava habituada e ser bem recebida para bem da cidade
e cidadãos e tudo se tornou negro e impermeável com estes modernos materiais
também emanadores de CO2, acrescendo-se ainda a poluição do som, num acréscimo
contínuo de desumanização da cidade que não encontra equilíbrio para a vida
global e a modernidade.
Assim, a exposição de 45
anos de arquitectura de Hestnes Ferreira, inaugurada no ISCTE a 7 de Fevereiro
de 2006, é importante não apenas pelos projectos que foram agora postos a
público na sua essencialidade contando a sua história pessoal que se confunde
com a profissional, mas porque este
arquitecto e o seu trabalho já fazem parte da história da cidade, sendo que
este preâmbulo só propõe equacionar a minha visão da cidade "desse
tempo", que também vivi, para que possa, então, olhar a sua obra e sobre
ela opinar, obra que não se pode separar nem da evolução do país nem da cidade,
nem do tempo histórico e cultural, e mesmo económico, pois que se os anos 60
são de grande viragem e evolução, os anos 80 serão o início de tempo de grande
degradação, hoje constatada não importa por que tipo de cidadão urbano, sabendo
ou não o que quer que seja da história da cidade que habita
A
sua obra é assim representativa e imbuída de factos da história do país durante
a segunda metade do século passado de que os actos de fazer arquitectura fazem
parte e que vieram também romper com a arquitectura
"institucionalizada" e denominada de "português suave"
Esta é uma exposição de um
homem e uma vida e da sua contribuição para o "construir-habitar",
que já não seria no entanto a cidade de agora que exige ainda mais
interdisciplinaridade do que há 50 anos atrás, porque a vida urbana se tornou
muito mais complexa, tempo durante o qual também aumentou de forma quase
inesperada a esperança de vida, a par das grandes mudanças sociais e de
participação do cidadão permitindo que os habitantes invoquem o direito de
pedir muito mais à cidade e, para tanto até bastará dizer que eu, cidadã do
mesmo país, nele vivi para além da maioridade sem qualquer direito de cidadania
pois que só me era concedido o direito social - e parcialmente jurídico - de
existir .
Abrir
a boca, ter opinião e emiti-la era como se se cometesse "pecado de querer
existir como ser social e intelectual" e as consequências estavam logo ali
- 50 anos bem interessantes, esses, que coincidem com o tempo em que o trabalho
deste arquitecto foi executado e “fez
cidade”, quase tantos quantos eu, e outros como eu, levaram a adquirir o
direito de existir em plenitude social. Mas não estarei a sonhar com essa de
plenitude social? Enganei-me com certeza.
Terminada
esta espécie de enquadramento sociocultural, parece no entanto que hoje,
importante ou vazia, a minha opinião pode não apenas ser emitida, como ouvida
e, se não for, resta o "grito", porque já se pode "gritar".
Desta
forma ao olhar cada projecto exposto, na sua imensa variedade formal recolhe-se
esta quase incapacidade de não voltar atrás para melhor repensar o hoje e, só
depois, mas em primeiro lugar, falar da sensação quase inquietante de
"quantidade", como se fosse inesperado que um homem só conseguisse
produzir o que foi nesta exposição dado apreciar por quantos a visitaram e
foram muitos e serão com certeza muitos mais os que terão interesse em ver a
"forma" como um
homem viveu o seu tempo através do seu trabalho.
Já
se escreveu neste blog/revista, no final do ano de 2005, sobre "o espírito
do lugar", num artigo geminado. Que interessante é esta experiência de
adesão intelectual, e afectiva, que faz alguém repegar uma ideia e geminar-lhe
a sua num "contínuo-cultural" que une, retoma e segue, à semelhança
do que é, afinal, a cidade, ela espelho dos habitantes, que permite construção
de afectos adentro (e fora) das paredes duras de cada habitação.
Parecendo-me
que habitar terá também essa
dimensão de juntar o meu ao seu olhar a cidade e a ideia de ser o espaço dos
homens e dos seus afectos e
de lançar raízes não apenas estéticas e éticas, mas também afectivas e
solidárias.
Cidade a Casa do Homem e o conforto de viver física e
emocionalmente.
Olhar
cada projecto de Hestnes Ferreira é desventrar-lhe não apenas a forma da sua
geometria mas a intenção com que o "desenho" se apropriou das mãos,
ou as mãos do desenho que se destinava a um lugar e a uma função específica
Olhar
cada projecto e apreciar-lhe o desenho de geometrias
quase arquetípicas tal que
se diria que cada lugar as aceitaria sem "gemido" porque se lhe apõem humanizando-o e
revivificando-o, dando-lhe "existência."
Espírito
do lugar?
Espírito
da intenção?
E
que espírito teria porventura cada lugar de cada projecto?
Não
teria sido algumas vezes o "espírito do projecto" que o deu ao lugar?
Se
há lugares que não admitem que sejam "adulterados na sua essência"
porque é essa a sua condição de "lugar", outros há que
"esperam" que algo ou alguém lhes dê vida e identidade em diálogo
inteligente homem-lugar e a sua obra.
Assim,
obrigada Raúl por essa arquitectura de mão-cheia, que "sobrou" como
exemplo de vida concreta e exponível para os teus colegas e para muitos outros,
e que "fez cidade e vida de viver."
PS
- não cheguei a falar sobre os projectos de Hestnes Ferreira, só falei de mim
como pessoa urbana que foi crescendo e olhando a cidade durante esse tempo de
trabalho em que foram sendo desenhados e construídos tais projectos pelo país
espalhados e pergunto se não será necessário aprender, colectivamente, a LER o
sentido e espírito de ser cidade com os espaços onde se tem de viver.
Lisboa e Bairro.de.Santo.Amaro, 11 de
fevereiro de 2006
Celeste.Ramos
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