Será que há arquitectura no feminino?
Não sei se há, não se fala nisso e nem sequer sei como
poderei "convidar" à leitura de sinais que possam definir a diferença
que "sinto", que há quando há projectos de arquitectura desenhados
por técnicos do sexo feminino, pois que, como o feminino em si mesmo, é subtil.
Talvez eu tenha encontrado, igualmente, diferenças não
apenas em certos pormenores bem como na finura de acabamento da obra tanto no
interior como no exterior dos fogos, obra que deve ser fiscalizada por quem a
concebeu, sendo sabido que o melhor projecto pode ser alienado se a construção
for "descuidada" relativamente ao desenho e imagem final pretendidos.
Houve de facto uma altura a partir da qual "a
mulher" saiu do "lar" e foi para a rua invadindo o espaço
escolar de todos os níveis passando pelo universitário e os mais altos graus
académicos, adquirindo saberes e competências ao mais alto nível, culminando no
reconhecimento não apenas nacional mas também mundial e, interessantemente,
cada vez em idades mais jovens – ainda recentemente tal ficou exemplificado
pelo caso de uma cientista portuguesa de 27 anos, de um centro de investigação
científica no Porto, que recebeu um prémio de um milhão de euros para
prosseguir o seu trabalho de investigação para combater a malária e alunos da
faculdade de engenharia, do Porto.
Num espaço de pouco mais de 100 anos, a mulher doméstica
(e domesticada) foi avançando com maior visibilidade e irreversibilidade,
sobretudo na segunda metade do século XX, quando invadiu todos os espaços de
trabalho começando pela necessidade de contribuição para melhoramento da
economia familiar mas, sobretudo, muito recentemente, fê-lo como acto
deliberado de libertação e de auto conhecimento, bem como de exposição social
das suas capacidades e aptidões até aí desconhecidas não apenas para
"ela" mesma, mas para o mundo de todos nós, altura a partir da qual o
ser "feminino" deixou, em muitos países, de estar enclausurado.
Não se está a esquecer o facto de a mulher que não foi
"rainha", ter tido sempre árduo trabalho em casa e nos campos, desde
as mais juvenis idades em que pode ser "aproveitada" como mão-de-obra
gratuita, submissa e quase geneticamente transmissível, sem direito nem à
escolarização nem sequer a ter e dar "opinião", mas, em
contrapartida, ter de, silenciosamente, durante todos os anos de adolescente e
adulta, percorrer vários quilómetros a pé e descalça de lata à cabeça cheia de
água, para simplesmente sobreviver e fazer sobreviver a sua família.
Mas não é disso que se pretende falar, embora na maioria
dos países do mundo e na maioria dos continentes, esse facto seja ainda hoje a
realidade do quotidiano, pese embora que, do total de habitantes do planeta,
52% seja do sexo feminino, porque assim "manda a natureza", julgo eu,
que seja mais abundante o "feminino" para que a VIDA não morra.
Mas é no denominado mundo ocidental e vincadamente na
Europa, que essa emancipação teve início e, neste domínio, Portugal não está no
fundo da tabela, por mais que desinteressantemente se reivindiquem tabelas,
como se a mulher não tivesse tido, até aqui, feito o caminho totalmente sozinha
sem bengalas nem concessões comiserativas.
A mulher "invadiu" todos os "reinos"
incluindo os mais fechados e antes “impensavelmente” possíveis de neles entrar,
invasão que passa por poder hoje trabalhar como estivadora ou condutora de
camiões TIR, poder ser soldado ou polícia ou toureira, poder integrar uma
equipa de futebol ou ser campeã olímpica, poder ser realizadora de cinema ou
encenadora, designer de interiores ou de moda, jornalista ou escritora, cantora
ou pintora, poder ser cientista ou professora universitária, ser senadora ou
ter alto cargo na Justiça, ser empresária ou assumir o cargo mais alto de uma
nação como primeira-ministra, situação nas quais Portugal tem todas estas
representações no "feminino", não estando, mais uma vez, nem no fundo
da tabela, nem sendo neste aspecto um país desconhecido no mundo
A mulher portuguesa também recebe altas condecorações
nacionais e internacionais, ou medalhas de ouro, ou outros prémios mundiais dos
mais difíceis de aceder, nos campos da ciência, das artes e das letras, pode
ser presidente de organizações internacionais, ou representante das
instituições mais emblemáticas do mundo e do mais alto valor Humanitário. Mas
nunca uma mulher portuguesa recebeu, ainda, prémios internacionais de
arquitectura, embora, mesmo que em número irrisório, tenha recebido prémios
nacionais!
E se no dealbar deste fenómeno de conquista de espaço profissional e
sociocultural relevante, teria começado como simples "imitadora do
homem", cedo se apercebeu de que não iria longe "sequestrando" o
seu "feminino", pelo que hoje soltou o seu ser inteiro cujo feminino
se expõe na sua verdade, na actividade profissional que escolheu para si e
vê-se, assim, com reconhecimento e visibilidade internacional.
Mas se já é reconhecida a existência de literatura “no
feminino”, se há arte no “feminino”, pergunta-se porque não há ainda
reconhecimento de arquitectura no feminino com os seus “sinais” diferenciais?
Seja porque razão for, o longo caminhar vai ainda no
início mas já permitindo a descolagem do instituído e estando aberto o caminho
para que a diferenciação seja cada vez mais visível e mais concreta, não por
conveniência de algo ou alguém, mas por afirmação sem “medo”, porque as
diferenças existem e contribuirão, com certeza, para uma maior riqueza de
linguagens e de comunicação entre todos os seres humanos.
Cada ser humano “aprisionado” não sabe de que é capaz –
fica atrofiado e certamente infeliz. Cada ser “libertado” não sabe, igualmente,
de que é capaz – terá que caminhar até saber-se. Conhecer-se.
Creio que só a “verdadeira liberdade” é benéfica para a
emanação da criatividade e da beleza do que cada ser tem dentro de si como
potencial a desbravar e deixar correr, sem mais “barragens” familiares, sociais
e culturais, única forma também de crescer o grau de responsabilidade
individual e colectiva e o mundo poder ser mais bonito, mais fraterno, mais
inteligente, e permitir-se amar-se melhor.
Só na aceitação da total “diferença real” residirá a
total IGUALDADE do ser humano masculino e feminino, para se construir o mundo
que se anseia.
As imagens são de 2004, em Esposende: um pequeno conjunto
residencial projectado pela Arq.ª Ana.Valente, da Câmara Municipal de
Esposende; seguem-se as respectivas imagens seguindo-se algumas notas
funcionais e de imagem retiradas do apontamento feito quando da visita do Júri
do Prémio do Instituto Nacional de Habitação.
Fogos brancos, frente + túnel entrada + muros que deixam ver mas não
completamente "o vizinho" (vista+visibilidade discreta) + jardim
frente + tapete tijoleira no jardim para a água da chuva não salpicar e sujar
os vidros das portas + árvore no jardim ritmando-o + escada de acesso cinzenta
clara (discreta contra o descofrado cinzento quase igual) + corrimão da escada
de acesso à horta + interior dos fogos (escada + armários + corrimão + estante
disfarçando coluna estrutural avançada, tudo da mesma madeira e da mesma cor e
tratamento) + cozinha + janela e luz da cozinha + 1º. piso uma janelinha
pequena vertical sem abrir mas para dar mais luz, para alem das janelas normais
+ economia de todos os espaços versus/usos versos pouco espaço – tratamento do
exterior e interior com igual qualidade sem hierarquia de importância porque
tudo é importante.
Lisboa Bairro.de.Santo Amaro - 26 Outubro 2005
Maria.Celeste.d'Oliveira.Ramos, arquitecta-paisagista
Imagens
de António Baptista Coelho