03 outubro 2018

O ESPÍRITO DO LUGAR


O ESPÍRITO DO LUGAR
maria celeste d'oliveira ramos
arqtª-paisagista
Lisboa-Bairro de Santo Amaro- 6 outubro 2005
Não é linear encontrar definição para o que se entende por "espírito do lugar" porque se por um lado há características essencialmente concretas e objectivas há, por outro, lugar para a subjectividade materializada pela criatividade e sensibilidade do projectista que é desafiado pelo próprio "espírito do lugar", o que não quer dizer que duas pessoas de idade e formação diferentes não possam, igualmente, ter muito diferente proposta de "ocupação do espaço" com igual qualidade, sendo pressuposto que tiveram percepção da sua grandeza e aptidão natural a ponto de até saberem rejeitar apor-lhe o que quer que seja - é "assim" aquele lugar, sem mais nada para que não se perca a magia

Para o projectista que tem em mãos a proposta de um projecto seja de um objecto simples de grande volumetria, incluindo o de uma estrada, ou de habitação a inserir no tecido urbano existente ou fora dele, ou de um grande conjunto habitacional, a análise do local será a primeiro passo a dar

Mas que local é este, que informação me dá para que o que vier a ser construído seja dialogante com as características, aptidão natural e condicionantes da paisagem e a humanize sem dissonância ?? acrescentando-lhe a obra do homem ??

A geologia e geomorfologia, a história e a geografia, a ocupação vegetal natural e cultivada, a natureza do solo e o seu passado de ocupação, a tradição e a envolvente, e ainda o clima e a luz, bem como a "cor da paisagem" são, de imediato, factores de ponderação para o tipo de construção, materiais e cor, sob pena de se inserir um "objecto" ou corpo estranho naquele conjunto que se apresenta como uma entidade perfeitamente defenida

Se um agricultor olhar uma "paisagem" e se o tempo tiver sido mais seco do que o habitual, vai com certeza afirmar que a seara não será tão grada, enquanto que um pintor mesmo sem reconhecer que plantas a "habitam", poderá extasiar-se com a cor e volumes, com a luz e as formas e movimento, como se "o mesmo lugar permitisse várias leituras" e, ambas válidas, assim como o escultor pode ver na montanha esquálida e descarnada, a beleza quase interior das pedras que lhe convém para a sua obra de arte, podendo mesmo apreciar essa "ferida" da montanha

Também um automobilista que domina bem o carro que conduz pode afirmar que a estrada que segue é fantástica, mas poderá não ter aptidão e informação para concluir se o local de implantação é inapropriado por ter decepado um território cujo valor botânico e científico, e ecológico, e mesmo paisagístico, entrou em degradação irreversível, e que a estrada, à luz do espírito do lugar, não poderia nem deveria ter sido ali traçada

Para quem é responsável por qualquer projecto que implique ocupação do solo de forma a alterar-lhe o uso irreversivelmente, como é o caso do arquitecto, neste momento em que o planeta já reage de forma tão brutal à acumulação do erro humano, terá cada vez mais de se rodear de equipe interdisciplinar para que a sua "idéia" se integre no LUGAR sem mais danos e possa mesmo ser "reparadora" do local porque, como a habitação, também a paisagem demolida pode ser restaurada e reconvertida, já que sempre o homem pode corrigir os seus próprios erros. Mas tenhamos sempre em mente que o mais belo Parque Natural cuja nomenclatura é tão recente, corresponde a centenas de anos de trabalho exclusivo e silencioso dos rurais, os tais "analfabetos" que nos deram "o berço - o pão e o vinho e a beleza da natureza para o espírito da terra nos poder ser revelado"

O homem criativo e sensível, e bem informado, olha e lê num local o que dele poderá ou não fazer, como se pudesse falar com as árvores e com o rio, e com a montanha, com a cor do céu e a luz, e com o vento, até porque nasceu e cresceu com esses "haveres" num local qualquer, e se por momentos pensou que tudo estaria sempre ao seu "serviço" sem apreender a alma do lugar, cêdo se apercebe de que é exactamente o oposto, e que a natureza e o "espírito do lugar" lá estão a mostrar-se para serem vistos da forma mais inesperada

AS CIDADES TAMBÉM SE ABATEM

AS CIDADES TAMBÉM SE ABATEM
They kill horses - don't they ??
23 outubro 2005

Inspirada no título do magnífico filme de Polansky dos anos 70 com Jane Fonda - "they kill horses - don't they” ??, também pergunto "ao vento" porque se abatem cidades, como Lisboa está a ser abatida na zona ribeirinha, sobretudo neste ano de 2005, como nunca, em tal escala
e velocidade que quase faz esquecer o que "lá estava ontem"

Todas as cidades envelhecem, mas nem todas "desmoronam" a menos que, como em Hiroshima e Nagasaki, seja lançada uma bomba atómica, de que se comemoram 60 anos, ou que sobre elas se abata, como em Lisboa em 1 de novembro de 1755 (e está a fazer 250 anos) um terramoto, como igualmente aconteceu em 8 de outubro deste ano no Paquistão e Cashemira, onde a fúria de um terramoto de grau 7.6 na escala de Richter, deixou aquela região, e tanta gente, tanta gente, com tanta dor

Quanto à natureza bruta já se sabe como actua e o que pode fazer, e desde o tsunami de 26 dezembro 2004 em Acheh, na Indonésia, onde a construção no litoral quase entrava mar-adentro, ao que se seguiu este ano o tornado em N.Orleans e Houston, fazendo tudo desaparecer do mapa em poucos instantes, como desapareceu há duas semanas (também 8 outubro), sob uma camada de lama de 12 metros de altura, parte da Guatemala, como se a natureza quisesse "fazer-se ouvir" mais profundamente

Será que a natureza é tão mais brutal quanto menos atenção o homem tem quanto à sua força, e decide construir onde e como não deve, ou sem os saberes e os cuidados que deve, só contando com a sua inteligência arrogante ??

Pergunto, não sei a quem, mas pergunto o que está a acontecer à Lisboa que adoptei como "a minha cidade do fim dos anos 50", a que chamava a Cidade do meu encantamento, mesmo depois de conhecer calcorreada a pé Roma, Veneza e Florença, Istanbul e Ephesus, ou Paris, e tantas outras do outro lado dos mares ?? mas que bem cedo me faziam apressar o regresso, como se aqui eu tivesse "outro respirar" ??, como se aqui fosse o lugar do "bater mais ritmado do meu coração", porque PERTENÇO aqui, a este LUGAR - ponho "os pés no meu chão"

Lisboa, a cidade do meu des-encantamento que começa a cair pedra a pedra com o camartelo ?? - mesmo que, ao vir de sul e atravessar a velha Ponte, ela apareça ainda como um poderoso dorso de dinossauro emergindo do seu mergulho em águas profundas, carregando os bairros e monumentos desde o Castelo até desaparecer para os lados do Mar, que lhe deram a mais longínqua identidade e glória ?? seja de noite, seja iluminada pelo pôr-do-sol que a torna doirada ?? e eterna ninfo-maníaca do Tejo ??

Com a cidade cresci e com ela envelheci, que foi tempo de me construir em identidade cultural e emocional, e cívica, a ela reportada como ponto de partida como se fora a "minha casa" onde habita "a minha família colectiva" ! !

Vi na cidade buliçosa, mas verde e limpa, saltarem os golfinhos no Cais das Colunas, vi a Praça do Comércio mudar de "escala" quando as suas fachadas pintadas de verde de Raúl Lino mudaram para rosa fresca ajudando a ler a sua "horizontalidade", ou para cores que lhe adulteram demasiado a escala, vi desaparecer os eléctricos e o contínuo de passeios de peões por onde se corria sem cuidado, vi a arte das fachadas e o pormenor dos ornamentos, vi história dos tempos nas paredes escrita, até submergir com o automóvel e, pior, com o betuminoso que se sobrepôs ao belo e eterno pavimento de cubos granito que deixava a chuva entrar devagarinho e refrescar o chão e o ar, e agora não vejo nada disso, não por saudosismo, mas por quebra vertical na qualidade de a habitar, sem grandeza nem progresso

Esse meu tempo de vida na cidade, correspondeu, exactamente, ao avanço da cidade iniciando-se por Benfica e Loures, fenómeno que se tornou imparável em ambas as margens do Tejo, coalescendo-se a Sintra e Vila Franca de Xira, e país fora, como mancha de óleo velho e feio e irreparável

Pergunta-se assim, porque não se decide antes desmoronar essa cidade de "arrabaldes" que foram roubados ao Campo-Horta e Campo-Palácios-Quintas da antiga envolvente, campo-horta que se substituíu pela construção maciça e sem lei, e não se tenta REORGANIZAR e restaurar a parte que na sua dimensão edificada poderá vir a ser "cidade”, com verdadeiros espaços públicos e culturais, e espaços verdes e Jardins, sem a tentação de impermeabilizar mais ?? e integrando o que por ventura ainda resta ??

Porquê, em vez desse RESTAURO urgente, reconversão urbana radical, os agentes da cidade se focam agora, velozmente, em fazer desmoronar os bairros antigos e ribeirinhos, de tecido urbano mais coeso e harmonioso e bem patrimonial da formação da memória e identidade do cidadão de tantas gerações, e do "orgulho cívico" de nela "Habitar" ??

Porque também o visual da beira-rio está a ser desmantelado porque as autoestradas urbanas, no seu pior, terminam em nós viários sobre o ex-libris do Aqueduto das Águas Livres, prosseguem até tornaram Algés irreconhecível ao desembocarem "sobre" a Torre de Belém, que já não se sabe onde fica, apesar de ser monumento também Berço da cidade e da nossa história

Como se "a cidade construída nessas 5 décadas" que trocou ser campo, Palácios e Conventos, pela expansão de habitação desqualificada e amontoados de automóveis, se tivesse igualmente saturado e com a velha cidade ribeirinha se empurrasem "ambas" para DENTRO do RIO ??, facto ajudado pela construção imparável de túneis que diariamente fazem desaguar milhares de automóveis no coração urbano

Da grande cidade que me encantou há 50 anos, onde cresci e fui envelhecendo, que foi toda de beleza frágil e simples, mas segura e luminosa nos seus conjuntos, só restam cada vez menos e mais pequenas "ilhas da velha urbe saudável e equilibrada", parecendo, contudo, que o conjunto secular dos edifícios da Carris de Santo Amaro, que são remate entre a colina de Santo Amaro e o rio, está condenado a desaparecer com mais uma autoestrada que, desde Monsanto, desabará também no Rio, nas Docas de Alcântara/Santo Amaro, desfazendo este bairro que até 2004 tinha a maior qualidade urbana, seguido do desmoronamento de todos os edifícios históricos industriais de Alcântara em 2005

Não pode ser, digo eu

Assim, a cidade nem sequer "envelhece”, apenas desmorona, nem sequer "recicla" o uso dos edifícios que fizeram história, para funções "modernas em "pedras antigas"

Sem querer, acredite-se, penso em como o Titanic dado como o paquete mais orgulhoso da sua estabilidade e invulnerabilidade, lhe bastou um rombo, apenas um, para que, rebite a rebite, se rasgasse como uma folha de papel contra um glaciar e se afundasse a pique sem tempo para se pensar no que estava a suceder

Creio que não se poderá ter ambição cultural e orgulho cívico se se morar numa gigantesca "Brandoa" e tiver de abrir a janela para uma auto-estrada, já que Lisboa está toda retalhada por auto-estradas e por elas estrangulada, sendo que a RUA deixou de ser a sua componente de estruturação, mas sim a autoestrada

Ao habitante não restará mais do que a humildade de aceitar ter, ao menos, um espaço para se abrigar, mas que não é mais espaço para viver com alegria de ter sido nascido ou vivido na capital do maior Império do Mundo e uma das maiores cidades do séc.XVII, aonde o "mundo vinha" VER e informar-se, que deu "novos mundos ao mundo", que espalhou Cultura e Religião, que deu Identidade a Continentes e que, agora, rasga o seu próprio bilhete de identidade

A Cultura é um quadro ético - que "mora" num lugar especial - que é a Cidade, e temos de propor para ela "aquilo em que acreditamos" e que tem de se manter vivo

Diminuir a qualidade de ambiente de uma cidade é diminuir a qualidade de vida de cada cidadão, e se se culminar no abater de uma cidade, serão abatidos os cidadãos

Mas porquê fazer desmoronar a "cidade original", semente da memória colectiva ?? ancestral ??

Não sei nem responder nem compreender

PS 1- mas sei que os problemas de Lisboa se resolvem no "interior provincial", hoje vazio de habitantes e de cultura, que nos anos 90 foram obrigados a deixar por ausência de estratégia de desenvolvimento de cada local habitado há milénios, e que bastava ter percebido que Lisboa começou a morrer quando, em vez de capital, passou a ter que ser uma "nação", que não poderá nunca responder ao que o país inteiro respondia, em cada local "abandonado" desse interior, que também se ABATEU, como se abate qualquer cidade abandonada que a NATUREZA selvagem invade nem interessa de que maneira

E se dúvidas houver, pergunte-se às cidades pré-colombianas, o que lhes sucedeu

As Cidades de 40 mil habitantes são o sustentáculo do conceito de Cidade evolutiva e dinâmica, autosustentável, que fazem Civilização

Perguntemo-nos porquê, a maioria esmagadora dos emigrantes (são 200 milhões os falantes da língua portuguesa espalhados em 5 continentes), quer VIR MORRER na terra onde nasceram ??