16 julho 2018

O Preconceito na apreensão da Cultura da Cidade e do Território - um artigo de Maria João Eloy

Terça-feira, Agosto 02, 2005

O Preconceito na apreensão da Cultura da Cidade e do Território - um artigo de Maria João Eloy
Breves notas de apresentação
O nosso Infohabitar, uma revista/blog que é de todos os que a fazem e lêem tem, mais uma vez, o grato prazer de apresentar uma nossa nova colaboradora, a Arq.ª Maria João Eloy, através da edição do seu artigo intitulado “O Preconceito na apreensão da Cultura da Cidade e do Território e da Paisagem Urbana”, cujo interesse ficará bem claro logo numa primeira leitura.

Maria João Eloy é Arquitecta e Mestre em Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa (FA/UTL) e não sendo aqui o lugar de fazer a sua apresentação, refere-se, no entanto e de forma telegráfica, que desenvolveu uma carreira diversificada entre o sector privado e o sector público, nomeadamente no FFH, no GAS, na SCML e na DGOTDU, registando-se, ainda, as actividades como profissional liberal e no domínio da pintura.
Finalmente, salienta-se que o texto que se segue constitui a adaptação de um excerto da Dissertação de Mestrado desenvolvida por Maria João Eloy na FA/UTL em 1998 e intitulada "O Preconceito no Conteúdo da Cidade."

A.B.Coelho, Encarnação, 3 de Agosto de 2005


O Preconceito na apreensão da Cultura da Cidade e do Território
Maria João Eloy
1. Pretende-se, com este texto, contribuir para o entendimento das implicações que têm as renovadas gerações de preconceitos para a apreensão da cultura da cidade e do território e da paisagem urbana;
2. Os pre-conceitos ou pressupostos, assumidos como regularidades e crenças e traduzidos em atitudes, aparecem como instrumentos para lidar com a realidade e interferem na gestão dos conhecimentos que fundamentam todo o tipo de intervenções na cidade, ou no espaço urbano;
3. Isto significa que as intervenções de todos os que fazem o espaço urbano, estão inseridas numa situação hermenêutica que consiste em possuir um conjunto de preconceitos que permitem leituras interpretativas, ao desenvolver antecipações de sentido projectadas pela compreensão prévia (Gadamer)1. Compreensão prévia que pertence ao campo da investigação das tendências dominantes julgadas suficientemente significativas;
4. Situação que acontece, tanto aos profissionais e agentes políticos que concebem, desenham e gerem o território e o espaço urbano, como aos habitantes e turistas que os povoam. Que acontece, quer aos cidadãos e funcionários municipais que o protegem, quer aos terroristas que o destroem;
5. Parece-nos fundamental que, na actualidade, a gestão dos conhecimentos que fundamentam todo o tipo de intervenções no espaço urbano, não dissocie os elementos de um discurso da regularidade e da reprodução, dos elementos do discurso da descontinuidade e da rotura (Decouflé)2;
6. Através de imagens, procuraremos mostrar as crenças e os preconceitos, traduzidos em regras de jogo, que são utilizadas, tanto no discurso da regularidade e da reprodução, como no discurso da descontinuidade e da ruptura do urbanismo, na era da globalização;
7. Não poderemos definir essas regras, porque é um problema cuja resolução envolve uma intervenção colectiva e transdisciplinar e exige uma praxis pouco ensaiada em Portugal;
8. Pretendemos apenas suscitar indagações sobre os temas da civilização como cultura urbana e o das implicações do ordenamento do território na paisagem urbana. Estas indagações apoiar-se-ão em registos fotográficos que se pretende possam fornecer sugestões para comentários e debate;
9. Para falar da paisagem urbana, conceito que decorre dos nossos preconceitos em relação à cultura urbana e ao ordenamento do território, recorreremos a imagens fotográficas de diversos tipos de paisagem urbana;
10. Não questionaremos aqui a pertinência da utilização do termo paisagem para os registos da visão do fenómeno urbano como um contínuo uno e indissociável, porque, como afirma Ledrut 3, a cidade possui a sua própria metafísica e a sua particular poesia, não é só prosa e tecnicismo;
11. Admite-se, sim, que a metafísica e a poesia da cidade, assim como a assunção de crenças e de identidades, podem ser pressentidas de diversas formas e constituem, para cada observador, o seu mapa e a sua paisagem do espaço urbano;
12. Espaço urbano que, na actualidade, não é apreendido como um todo tridimensional e compacto, mas como uma rede de lugares múltiplos (Rémy e Voyé) 4, conectados entre si por sistemas de simulação, de programação e de informação, que se podem traduzir num desaparecimento de sentido que é a tonalidade fundamental desses sistemas funcionais;
13. Perguntar-se-á, então, que formas de identidade e de afeição poderão ocorrer nas civilizações das novas redes urbanas, se a melancolia é essa desafeição brutal resultado dos sistemas saturados que as povoam (Baudrillard) 5;
14. Bastará atender às imagens apresentadas para distinguir entre paisagens que traduzem um discurso urbano da regularidade e da reprodução e paisagens que traduzem um discurso da descontinuidade e da ruptura do urbanismo, resultantes de uma economia globalizada e de um universo cultural fragmentado, que fazem emergir conflitos marcados pela necessidade de uma defesa da identidade;
15. Se os primeiros exemplos, escolhidos em Portugal, Açores (Fig.1, Fig.2), em Luxemburgo (Fig. 3), na Dinamarca, Copenhaga (Fig. 4) e na área central de Nova Iorque (Fig.5, Fig.6), poderão obter unanimidade de aceitação, será improvável a mesma atitude nos segundos exemplos escolhidos também em Nova Iorque (Fig.7, Fig.8), em Caracas (Fig. 9) e em Grozny (Fig. 10), prevendo-se que nestes seja questionada, quer a legitimidade de um processo urbanístico dominado por uma racionalidade económica que instrumentaliza todas as outras mediações, com o fim de realizar os seus próprios interesses estratégicos, quer os incalculáveis danos a que foram sujeitadas as populações pela mediação da guerra;
16. No entanto, através dos exemplos seleccionados, pretende-se mostrar como cada núcleo urbano tem merecido uma atenção diferenciada dos agentes políticos, mesmo que tendencialmente se constate a padronização das cidades, motivada por uma globalização das redes que alimentam as identidades e solidariedades colectivas da vida urbana actual, as quais reflectem uma nova territorialidade, cada vez mais complexa e codificada;
17. Pretende-se ainda mostrar que, enquanto um espaço pode ser definido como uma forma da nossa relação com as coisas, forma pela qual identificamos um objecto ou o que representa a sua unidade para nós, uma espacialidade (Ledrut, 1968) entende-se como uma forma de espaço culturalmente construída, pela qual um sujeito apreende objectos em relação aos quais ele próprio se posiciona, razão pela qual uma espacialidade nos aparece como uma estrutura a priori em relação a um actor social;
18. Como referido no início deste texto, admitimos que a elucidação do conceito de paisagem urbana remete para os de cultura urbana e espacialidade, reclamando estes a exegese dos fenómenos urbanos e culturais e do que neles faz sobressair o filosófico e o histórico;
19. Esta exegese, só possível pelos preconceitos do intérprete sobre o fenómeno urbano, a filosofia e a história, implica, todavia, que esse preconceito, nas suas diversas formas, bloqueie constantemente a sociabilidade ou a erotização, provocadoras de comportamentos criativos, próprios da vida urbana;
20. Ao pretender demonstrar que o uso efectivo da cidadania, em todas as suas formas expressivas, traduz a gramática do urbanismo, reconhece-se a necessidade de uma aproximação ao urbanismo através de uma pragmática que investigue os graus de uma verdade instrumental; uma verdade que acontece a uma ideia que se torna verdadeira, ou melhor, que se faz verdade por meio dos acontecimentos.
Conclusão:
Convém reflectir na diversidade de intervenções de autores da actualidade no relato instantâneo dos acontecimentos, implícita em cada estremecimento quotidiano da civilização jornalística, que evidencia a destruição da experiência, onde os acontecimentos irrompem desprovidos de história e parecem não se converter em experiência ou ensinamento; esta a razão porque a predominância da descrição de paisagens em registo fotográfico, em planos desenhados e em relatos escritos é um reflexo da destruição da experiência e da sua autoridade, na construção da sociedade moderna. Autoridade que remete para o ‘contacto’ efectivo de que fala Virilio e do qual, hoje, nos distanciamos inexoravelmente.

Fig. 1: Açores, S. Miguel, Ponta Delgada, Museu Carlos Machado - fot. MJE, 2005

Fig. 2: Açores, S. Miguel, Ponta Delgada, Praça Vasco da Gama - fot. MJE, 2005

Fig. 3: Luxemburgo, Place d’Armes - fot. MJE, 2005


Fig. 4: Copenhaga, New Harbor - fot. MJE, 2004
Fig.5: Nova Iorque, “ Looking south on ParkAv from 93rd Street”,
NYSocial Diary, 05.2005, fot. JH

Fig.6: Nova Iorque, “Wollman Rink in Central Park Toward Sunset, Manhattan”

Fig.7: Nova Iorque, “View of Manhattan skyline from the Jersey Turnpike”
2004/12_21_04/socialdiary12_21_04.php

Fig.8: Nova Iorque, “NY blackout, August 14, 2003”


Fig. 9: Venezuela, bidonville em Caracas, 2005
Fig. 10: Exemplo da devastação da guerra em Grozny


Nota 1: Este artigo corresponde à adaptação e desenvolvimento de alguns capítulos da Dissertação intitulada “O Preconceito no Conteúdo da Cidade”, realizada por Maria João Eloy P. C. Rodrigues, para o Mestrado “Cultura Arquitectónica Contemporânea e Construção da Sociedade Moderna”, realizado de 1994 a 1996 na FA/UTL.
(1) Gadamer, Hans-Georg - Verité et Méthode (1969) – Seuil, 1996
(2) Decouflé (1972) - A Prospectiva, Bertrand, 1977
(3) Ledrut - Sociologia Urbana, 1968
(4) Rémy e Voyé (1992) - A cidade: Rumo a uma nova definição, Afrontamento, 1994
(5) Baudrillard, Simulacros e Simulações (1981) - Relógio D’água, 1996

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