Maria Celeste d'Oliveira Ramos
Engªsilvicultora
Arquitecta-Paisagista
Universidade Técnica de Lisboa
Da minha janela vejo o mundo e reconheço o meu olhar
A RUA é a rainha do espaço urbanizado e é património do peão
Calcorrear a rua atravessando
o espaço definido pela sucessão das fachadas que se exibem contando a sua arte,
o tempo que trabalhou as pedras de que são feitas, o tipo de homem que as
desenhou, permite desenrolar perante o olhar uma espécie de filme com uma
história e um enredo de formas, de materiais, de funções, de objectos
singulares sinalando posições específicas, de esquinas revelando outros
caminhos, como uma carta geográfica enriquecida pela presença dos “habitantes”
de pedra por vezes rendilhada, de azulejo, de ferro forjado, de vidros e de
vitrais, de cores, trabalhando e desdobrando a luz, entretendo o nosso olhar
obrigando-nos a ser expectadores activos, críticos, contentes ou descontentes,
ao percorrer o museu dinâmico que é qualquer espaço habitacional onde se aprende
geografia e história, ecologia e sociologia, e artes, e vida, estampada nos
rostos que por nós se cruzam
Caminhar ou deambular
por um espaço histórico e cultural a contar a história do tempo e da arte dos
homens
Rua, fachadas,
esquinas, formas, volumes, luz e escuridão, envolvendo o todo e as partes, nos
passeios, nos largos e jardins, e na árvore de sombra bemfazeja, de copa
volumosa com folhas e pássaros, inserindo a natureza viva dentro do habitar, ou
sem folhas, escultura desnudada ainda dando a beleza, a escala da rua e do
próprio homem e, ainda, o ritmo das estações do ano
Que bonita e fresca é a
minha rua com árvores que dão flores e frutos, cores e perfumes, e me acordam
para me obrigar a olhá-las mesmo que de relance porque vou com pressa a um
qualquer lugar
Vou à minha vida
atravessando este espaço de vida que a rua me obriga a compreender com todos os
sentidos despertos, pelo que me deixa ver e consolar o meu próprio espírito,
refrescando-me o corpo com a brisa que provoca, o ouvir dos pássaros que nela
poisam, o excitar do olfacto com o perfume de suas flores, mesmo olhando para o
chão que vou pisando desenhado e construído com as mãos inteligentes de carinho
para embelezar o meu caminhar diminuindo
a percepção do meu cansaço
A CASA, a habitação, isolada ou integrada num conjunto, é o
abrigo do sol e da chuva, do frio e do calor, do olhar dos outros, do nosso
cansaço e desespero, é ABRIGO e refúgio do que somos, do corpo e da alma
É a nossa caverna, o
nosso buraco onde não queremos partilhar-nos com mais ninguém, a não ser com aqueles
que pertencem ao nosso não querer viver connosco sós
Sendo um espaço fechado
é no entanto o primeiro espaço de aprendizagem de vida colectiva com a família
(e/ou amigos), o primeiro espaço cultural porque casa é mais do que o lugar de
habitar porque é espaço onde acontece cultura
É a segunda pele que
nos separa e distingue dos outros grupos-família, dos outros moradores de cada
casa e de cada rua
Opostamente, os
“homeless” são os que ou nunca encontraram esse abrigo, ou os que rejeitaram o que tiveram, ou até nunca tenham
tido ou ainda, tendo tido, tudo lhes foi tirado e restou-lhes a rua da cidade
Da janela da minha casa
vejo a RUA e as outras habitações e delas poderei pressupor parte do que se
passa dentro
Vejo a chuva, vejo o
céu e o sol que logo aparece, vejo a lua e as estrelas e os aviões a cruzarem
os ares, e vejo as outras casas e também quem passa e se afadiga como se as
janelas fossem os OLHOS da Casa
Da janela vejo o MUNDO, e à forma e dimensão desse espaço "vazio"
de olhar o mundo, poderá ser acrescentada a qualidade que cada habitante,
pessoalizando-a com as cortinas feitas por amor, ou vasos de flores, para que a
natureza viva não se afaste do viver, e a minha janela poderá ser mais bonita
do que a do vizinho
Não será a janela de
uma Catedral, mas se o arquitecto que a desenhou tiver deixado espaço e forma,
algo de pessoal se poderá acrescentar que diferencia e humaniza a rua que não
será apenas uma sucessão de fachadas sem calor humano, algo que o arquitecto
nunca poderá fazer, mas apenas sugerir, e permitir que aconteça, desenhando
como quem desenha o sagrado, porque se trata de desenhar para a “vida” de cada
um
Se a rua nas suas
fachadas fala do tempo e do artífice que a desenhou e construiu prédio a
prédio, a janela fala de quem lá vive, da sua alegria manifestada ou mesmo grau
de pobreza
A janela que permite
ver de dentro para fora tem igualmente essa dimensão de deixar ver o que ela
reflecte
E até uma andorinha
poderá ali poisar no parapeito na primavera e dar mais uma dimensão de vida do
habitar
A janela separa do
exterior mas não o elimina completamente – mostra vida de ambos os lados,
comunica com a VIDA, dialoga com quem vive nele e por ela passa, e a olha
Abro a minha janela e
deixo entrar o Sol e o vento, os perfumes da rua e os ruídos da vida dos homens
acordados, quando a cidade se levanta
Esse diálogo da janela
é também perceptido pela casa ou conjunto, relativamente ao local e forma como
foi implantada, na natureza bruta, fazendo com ela um diálogo também de amor e
inteligência ou, pelo contrário, desprezá-lo, ficando o local desmantelado sem
ética ambiental, sem estética, desumanizado e destruído e a habitação
desqualificada e o habitar penoso
A minha janela como o
meu olhar
A minha RUA como a Vida
do mundo dos Homens
Maria celeste
d'oliveira ramos
Lisboa 12 março 2005
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