16 julho 2018

Da minha janela vejo o mundo e reconheço o meu olhar


14 fevereito 2005
Maria Celeste d'Oliveira Ramos
Engªsilvicultora
Arquitecta-Paisagista
Universidade Técnica de Lisboa

Da minha janela vejo o mundo e reconheço o meu olhar

A RUA é a rainha do espaço urbanizado e é património do peão

Calcorrear a rua atravessando o espaço definido pela sucessão das fachadas que se exibem contando a sua arte, o tempo que trabalhou as pedras de que são feitas, o tipo de homem que as desenhou, permite desenrolar perante o olhar uma espécie de filme com uma história e um enredo de formas, de materiais, de funções, de objectos singulares sinalando posições específicas, de esquinas revelando outros caminhos, como uma carta geográfica enriquecida pela presença dos “habitantes” de pedra por vezes rendilhada, de azulejo, de ferro forjado, de vidros e de vitrais, de cores, trabalhando e desdobrando a luz, entretendo o nosso olhar obrigando-nos a ser expectadores activos, críticos, contentes ou descontentes, ao percorrer o museu dinâmico que é qualquer espaço habitacional onde se aprende geografia e história, ecologia e sociologia, e artes, e vida, estampada nos rostos que por nós se cruzam

Caminhar ou deambular por um espaço histórico e cultural a contar a história do tempo e da arte dos homens

Rua, fachadas, esquinas, formas, volumes, luz e escuridão, envolvendo o todo e as partes, nos passeios, nos largos e jardins, e na árvore de sombra bemfazeja, de copa volumosa com folhas e pássaros, inserindo a natureza viva dentro do habitar, ou sem folhas, escultura desnudada ainda dando a beleza, a escala da rua e do próprio homem e, ainda, o ritmo das estações do ano

Que bonita e fresca é a minha rua com árvores que dão flores e frutos, cores e perfumes, e me acordam para me obrigar a olhá-las mesmo que de relance porque vou com pressa a um qualquer lugar

Vou à minha vida atravessando este espaço de vida que a rua me obriga a compreender com todos os sentidos despertos, pelo que me deixa ver e consolar o meu próprio espírito, refrescando-me o corpo com a brisa que provoca, o ouvir dos pássaros que nela poisam, o excitar do olfacto com o perfume de suas flores, mesmo olhando para o chão que vou pisando desenhado e construído com as mãos inteligentes de carinho para embelezar o meu caminhar  diminuindo a percepção do meu cansaço

A CASA, a habitação, isolada ou integrada num conjunto, é o abrigo do sol e da chuva, do frio e do calor, do olhar dos outros, do nosso cansaço e desespero, é ABRIGO e refúgio do que somos, do corpo e da alma

É a nossa caverna, o nosso buraco onde não queremos partilhar-nos com mais ninguém, a não ser com aqueles que pertencem ao nosso não querer viver connosco sós

Sendo um espaço fechado é no entanto o primeiro espaço de aprendizagem de vida colectiva com a família (e/ou amigos), o primeiro espaço cultural porque casa é mais do que o lugar de habitar porque é espaço onde acontece cultura

É a segunda pele que nos separa e distingue dos outros grupos-família, dos outros moradores de cada casa e de cada rua

Opostamente, os “homeless” são os que ou nunca encontraram esse abrigo, ou os que  rejeitaram o que tiveram, ou até nunca tenham tido ou ainda, tendo tido, tudo lhes foi tirado e restou-lhes a rua da cidade

Da janela da minha casa vejo a RUA e as outras habitações e delas poderei pressupor parte do que se passa dentro

Vejo a chuva, vejo o céu e o sol que logo aparece, vejo a lua e as estrelas e os aviões a cruzarem os ares, e vejo as outras casas e também quem passa e se afadiga como se as janelas fossem os OLHOS da Casa

Da janela vejo o MUNDO, e à forma e dimensão desse espaço "vazio" de olhar o mundo, poderá ser acrescentada a qualidade que cada habitante, pessoalizando-a com as cortinas feitas por amor, ou vasos de flores, para que a natureza viva não se afaste do viver, e a minha janela poderá ser mais bonita do que a do vizinho

Não será a janela de uma Catedral, mas se o arquitecto que a desenhou tiver deixado espaço e forma, algo de pessoal se poderá acrescentar que diferencia e humaniza a rua que não será apenas uma sucessão de fachadas sem calor humano, algo que o arquitecto nunca poderá fazer, mas apenas sugerir, e permitir que aconteça, desenhando como quem desenha o sagrado, porque se trata de desenhar para a “vida” de cada um

Se a rua nas suas fachadas fala do tempo e do artífice que a desenhou e construiu prédio a prédio, a janela fala de quem lá vive, da sua alegria manifestada ou mesmo grau de pobreza

A janela que permite ver de dentro para fora tem igualmente essa dimensão de deixar ver o que ela reflecte

E até uma andorinha poderá ali poisar no parapeito na primavera e dar mais uma dimensão de vida do habitar

A janela separa do exterior mas não o elimina completamente – mostra vida de ambos os lados, comunica com a VIDA, dialoga com quem vive nele e por ela passa, e a olha

Abro a minha janela e deixo entrar o Sol e o vento, os perfumes da rua e os ruídos da vida dos homens acordados, quando a cidade se levanta

Esse diálogo da janela é também perceptido pela casa ou conjunto, relativamente ao local e forma como foi implantada, na natureza bruta, fazendo com ela um diálogo também de amor e inteligência ou, pelo contrário, desprezá-lo, ficando o local desmantelado sem ética ambiental, sem estética, desumanizado e destruído e a habitação desqualificada e o habitar penoso

A minha janela como o meu olhar
A minha RUA como a Vida do mundo dos Homens

Maria celeste d'oliveira ramos
Lisboa 12 março 2005

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