A natureza esteve sempre presente e às
portas da cidade, como é o caso do local onde Cristo meditou antes de ser
crucificado: o Monte das Oliveiras.
Sempre os Grandes Parques e Jardins
estiveram ligados à realeza e ao clero e às classes possidentes (asvillas italianas do quatrocento e cinquecento),
a maioria dos quais, nos países em desenvolvimento, foram sendo sucessivamente
doados à população com o crescimento quase imparável da cidade com a expansão
provocada com o advento da era industrial e o afluxo dos rurais a novas formas
de trabalho nas periferias urbanas e que não haveria retorno.
Parques e
Jardins eram assim absorvidos no interior habitacional, mas é só com o
aparecimento de nova classe social, a do proletariado, que o jardim tem a marca
de "público" (Passeio Público de Lisboa - ver e ser visto de Eça de
Queiroz), tendo o primeiro Country
Park sido construído no
início do séc. XX com a Cidade Jardim de Ebnezer Howard (1), sendo da mesma época o
Central Park, em N.Y. (2),
desenhado conjuntamente pelo paisagista Frederick Law Olmstead e pelo
arquitecto C.Vaux (3), o
primeiro parque construído em solo municipal.
A população "anónima" não se
importando em que estrutura urbana habitava, adquiriu assim direito público à
natureza dentro da cidade, já que até aí tinha os espaços públicos das praças e
adros das igrejas, dos largos de feira; rocios e corredoras, situados nas
periferias.
A força da natureza dentro do ser humano
e o apelo à sua presença próxima, ainda hoje se nota na casa mais pobre onde se
pode observar encavalitado num muro qualquer, ou à porta, uma lata cheia de
terra e de bem cuidadas flores como se fora uma riqueza e que altera
profundamente e humaniza o pior dos ambientes do habitar.
As
cidades cresceram, sobretudo com base num desenho assente sobre uma
"grelha" reticulada impondo-se ao solo e com tratamento de taludes
numa relação intencional de interior-exterior, embora em postura intimista, até
que a partir do século XVI o exterior vira-se para a paisagem envolvente,
estrutura que se perpetuou por séculos.

Lembremos a estrutura urbana das cidades
de beira-mar de Pompeia e Herculano (também com o seu fórum) existentes entre
os anos 80 a.C. e 79 d.C. que o Vesúvio sepultou, cuja "grelha" se
vai expressar na Baixa Pombalina plana ou no Bairro Alto alcantilado ou, ainda,
em Campo d'Ourique ou nas Avenidas Novas, e por todo o espaço urbano do mundo,
sendo Savaahna, na Virgínia do Sul, uma das mais geométricas e reticuladas
cidades que alguma vez visitei, em que o "quadrado" do edificado
rivaliza com o do ajardinado, público e privado, e em que as cérceas são baixas
e a árvore é rainha, e se no início do século XX houve muitos adeptos do
desenvolvimento do conceito de cidade ideal, eu diria que Savaahna assim
poderia ser considerada, essa bela cidade à beira do Rio Savaahna (topónimo da tribo
índia).

Mas teremos em paralelo o desenho da estrutura labiríntica como o do
Bairro de Alfama (aberto) ou da cidade imperial amuralhada, de Fez, até com
vários andares solo abaixo e aí, nos podemos perder na quase escuridão e aperto
da Medina Velha, onde a qualidade do ambiente é ainda insalubre e de
intoleráveis odores, porque no chão se misturam os produtos do mercado e as
célebres laranjas marroquinas, ao lado da bosta fresca do burro, apesar de, do
exterior e de longe, se constatar uma implantação de excepcional beleza
agarrada ao monte e a "desenhá-lo", em que o branco do casario
apertado em muro espesso e alto, fica doirado ao pôr-do-sol e nos espanta de
beleza por fora, tendo para isso, exactamente, um "percurso turístico do
pôr-do-sol" a rodear a cidade.

Mas em Alfama é para nós mais inteligente
o Labirinto porque tudo de passa ao sol, em que o casario se agarra ao relevo e
vence os declives constituindo-se geomorficamente, tanto na habitação volgare como nos palácios e nos monumentos, de
ruas estreitas e sinuosas mas onde ninguém se perde porque nos permitem ler bem
os percursos desenhados e pontos referenciais, na colina que se
"sobe", mas que também se desce pelas escadinhas que vão dar à beira
do rio, por onde, todos os dias, sobem e descem as brisas quentes da manhã e
frescas da tarde e onde os velhos se encontram à porta e as crianças brincam
sem cuidado, mas protegidos, o mesmo sucedendo na Judiaria de Sevilha, mas em
situação plana.
Alfama, colina virada para o rio, janelas
viradas para o sol e para a luz e calor. Estrutura simbólica de ruas
estreitinhas visando duplamente unidade física e espiritual não apenas para
refrescar da canícula, mas para promover a proximidade humana e o convívio nas
ruas que, por vezes, se desenvolve, aqui e ali, numa habitação, numa loja térrea,
ou num largo em espécie de "Ágora", como consequência da sua
convergência, sendo que na cidade cristã a convergência se vira para a
catedral, mas Alfama tem tudo isso numa assimilação e síntese de todos os
desenhos urbanos e formas do viver.
E nesses
"espaços que parece que sobram", mais pequenos, também lá se poderá
encontrar uma arcada, um chafariz ou uma árvore ou apenas o larguinho que nos
detém e onde se faz encontro e acontecimento no quotidiano ou nos dias festivos
marcados no calendário, árvore que pode também aparecer onde a escadaria se
desenrolou declive abaixo alargando patamares - mas que bonito parecendo como
se fora "ocasional."

Igualmente as cérceas, mesmo as mais
altas, se vão encostando e desenhando o "sky
line" como se se lesse
que pendente tem cada colina e que continuamente deixa ver o Rio, e que também
são rasadas pelo vento que corre livre sem labirintos e remoinhos e limpa o ar
que foi sendo poluído, desfazendo eventuais "ilhas de calor ou de
frio", como se cada pedaço concêntrico ou geométrico, ou linear, fosse
idêntico resultado da construção de "formas" que deriva da contínua
acção da criatividade humana que em cada tempo histórico nos dá a ler uma
"ordem" feita em função do local, seja ele local do poder, dos
centros de interesse comercial ou cultural, ou simplesmente do habitar.
E sendo Lisboa ainda uma cidade de
colinas não é possível ignorar os espaços de jardim de cada uma e que são
verdadeiros miradouros para o rio e para o pôr-do-sol, mas sendo que é
exactamente em Alfama que na cerca moura um miradouro permite ver o mais belo
luar em noite de lua cheia de Agosto em que o rio, na sua máxima largura fica
todo de prata, espectáculo que certamente será conhecido penas por quem lá
mora, mas que nem sequer está num roteiro turístico, esse percurso dos
miradouros para olhar o rio, o pôr-do-sol e da Lua cheia a pino, valores de
grande qualidade de ambiente urbano, pôr-do-sol que rivaliza com o de Istambul
(à mesma latitude de Lisboa), mira-rio que rivaliza com Istambul na borda do
mar da Mármara (Corne d'Or), atmosfera de Lisboa que, tão diferente,
parece a "mesma".
Seja por esta razão, seja porque certas
cidades nasceram a partir de áreas amuralhadas de que acabam sempre por
extravasar, mesmo construindo-se outra mais tarde como é claro o caso de
Lisboa, esta construção com intenção de defesa tanto em situação plana como
montanhosa mais frequente na Idade Média, muralhas que continham por vezes
formigueiros dos rurais que os senhores deixaram entrar e proteger-se das
guerras que acompanham sempre a história do homem e das cidades, a cidade tem
uma estrutura de desenho que é função da história e das circunstâncias
Hoje não há muralhas, nem sequer há
fronteiras, pelo menos Europa fora.
Mas falando em qualidade do ambiente
urbano a partir dos núcleos que deram origem à cidade, se calhar até podemos
dizer que as fortificações portuguesas dos Descobrimentos, espalhadas pelo
litoral de todos os mares, ou na maior interioridade da selva da América do
Sul, são igualmente exercícios de urbanismo inicial cuja forma resulta do
promontório onde se instala sendo o forte de Ceuta, de S. Filipe, uma das mais
extraordinárias e engenhosas obras de arte portuguesa que, igualmente, deixa
aproximar e conter navios a proteger, quando perseguidos no mar.
Também
Madrid, cidade plana, teria "nascido" no castelo amuralhado, de
Manzanares perto do rio do mesmo nome.
A muralha de função temporal para
protecção do litoral, ou de castelo no topo de um monte era igualmente
protecção no interior plano de qualquer território, fortes de defesa dos centros
de acolhimento e trocas comerciais da Estrada da Seda ou da Estrada das
Especiarias.
Mas são igualmente desenhados com sentido
urbano os locais de peregrinação como os Karavonzarai do mundo muçulmano, ou do nosso, como
Santa Luzia e Sameiro, da Senhora do Bom Jesus do Monte, ou cabo Espichel (promontorium
barbaricum), e tantos outros que abundam no nosso país nos locais mais
recônditos e que não conhecemos; urbanização religiosa que representa
património monumental e memória da história – dos usos e costumes e crenças do homem religioso que são
património monumental edificado e intemporal do mundo.
Exemplos como Ávila, Lisboa ou Óbidos,
Évora ou Beja, de muralhas de planta irregular e de panos rectilíneos ou
côncavos, ou Almeida, Elvas e Valença, de muralhas em desenho de estrela
perfeita, algumas de muros duplos, sendo facto que todas cresceram
transbordando-se sempre em aglomerados periféricos readquirindo novo desenho,
tantas vezes tão caótico, como se não pudessem ter colhido nenhuma inspiração
através da essência e espírito desses lugares antigos e são relíquias urbanas
do génio humano, memória também da história de fazer cidade e construir
habitar.
Sempre o tempo e as circunstâncias
(porque o homem é o homem e a circunstância) obrigaram a interferir no desenho
da estrutura das cidades antigas com o crescimento demográfico sem directivas
urbanas específicas, em que era cada vez mais difícil o controlo do assalto
pelos ladrões, para além da insalubridade que o crescente amontoado gerava, que
levou, em meados do século XIX, o maire de Paris, o barão de Haussman (4) a rasgar amplas ruas rectilíneas,
servindo ao mesmo tempo o policiamento e a limpeza natural, com o correr do
vento, do meio urbano poluído e pesado.
Mas
qualquer que seja o desenho da estrutura urbana desde o reticulado mais
interessante ao labiríntico, ou "celular", a rua é "o
sinaleiro."

Para além da imperiosa e urgente
necessidade de um renascimento quanto a uma terceira forma de planear a cidade, muito
ajudaria que politicamente os centros de produção económica e cultural se
deslocalizassem para o interior onde o êxodo foi forçado na década 80/90 e que
no país provocou a III explosão incontrolada da cidade (a primeira na era
Industrial e a segunda originada por uma das maiores pontes aéreas humanas com
a vinda de quase um milhão de portugueses habitantes dos países lusófonos em
1976/78), não retirando a ninguém o direito de morrer no local onde nasceu para
que, semelhantemente ao que disse o velho abandonado que “a vida escureceu”,
não se diga o mesmo da cidade – para que não morra e com ela a sua função e
cultura – cidade sempre espelho da saúde física e cultural dos habitantes, mas
certamente com maior relevância quanto aos decisores.
Muitos
dos problemas de qualidade do ambiente urbano nas grandes cidades do país,
sobretudo do litoral, encontrariam a solução nas belas cidades e vilas históricas do interior que foram despovoadas e que, ironicamente, também
andam agora a crescer mal, como se a cultura deteriorada na grande cidade fosse
exemplo a tomar sem capacidade crítica.
O contínuo verde urbano na sua dimensão
de estrutura verde principal e secundária, tem de voltar a ter a porta aberta
ao continuum naturale para que se mostre ali às "portas
da Cidade" que tem sido tapado e interrompido drasticamente por muralhas
de floresta de betão, que representa a maior perversão da Carta de Atenas, que
pretende aumentar área urbana permeável e ajardinada, libertando-a com a
construção em altura.
E se o país pode re-viver novamente
grandes acidentes naturais como as enxurradas catastróficas e mortais de
Novembro de 1983 e de 2001, se há meia dúzia de anos a europa do norte vive os
Invernos sobretudo depois dos degelos, debaixo de água, não chegando a
recuperar os estragos de ano para ano, a par das alterações climáticas mundiais
que se tornaram incontroláveis, não acrescentemos as alterações provocadas pela
inconsciência e ligeireza de decisões de impermeabilização do solo decorrente
da construção de infraestruturas e habitação nos locais a reclamar pela chuva.
A qualidade do ambiente não se
circunscreve, porém, à qualidade adentro do espaço urbano, mas a toda a
situação que respeita aos habitantes e que lhes permite melhorar em termos
culturais, económicos e sociais para que, também, a qualidade de vida melhore e
se evolua globalmente.
Pelo menos nos últimos 30 anos o
crescimento económico postou-se, essencialmente, no construir com betão e
betuminoso, infraestruturas necessárias mas até, por vezes, de qualidade
duvidosa, que embora podendo ser factores que conduzem a "desenvolvimento",
o certo é que o desenvolvimento tem de se reflectir na qualidade de vida global
de todos os cidadãos e lugares e, como tem sido referido, as vias rápidas
serviram para fomentar o despovoamento e a migração interna na procura de
"emprego" e de infraestruturas de assistência de vária ordem sem as
quais não há qualidade de vida mas apenas "abandono", provocando-se
assimetrias de centros de desenvolvimento e povoamento nunca antes acontecido
no país nem nas épocas de maior pobreza (anos 50/69), que levaram a movimentos
de emigração para os mais variados países.
Qualidade
do ambiente implica qualidade de vida do espaço físico global e dos cidadãos, e
também pertencem à memória colectiva os grandes planos de desenvolvimento do
Cachão em Trás-os-Montes, o Plano de Sines, o Plano do Alqueva e, agora, os
planos de transportes da OTA e do TGV, planos que têm sido eternos “elefantes
brancos” do País, que embora gerem trabalho e emprego temporário, não têm sido
desenvolvidos até à sua respectiva finalização, para além de não terem
provocado sinergias conducentes a uma oferta de trabalho contínuo e à
desmultiplicação de um grande leque de actividades económicas e culturais em
cada zona específica, contribuindo assim para a sua contínua renovação, em vez
de uma contribuição para uma sua degradação funcional e para o envelhecimento
da população local – os que quiseram ficar e resistir até à mais triste
situação de que é exemplo Bragança, há bem pouco tempo cidade radiosa, e
actualmente com 70% de idosos e, a este e a outros casos idênticos, muitas
aldeias, vilas e cidades se lhes seguirão, já que dos 10 milhões de habitantes
nacionais gravitam na Grande Lisboa quatro milhões e dois milhões no Grande
Porto, dizendo isto muito do deserto humano que caracteriza boa parte do resto do
território.

Mas em vez da diversificação de factores
e agentes económicos, pelo contrário, as actividades económicas centram-se
bastante num único sector, o dos transportes, seguido de algum comércio e
serviços, sendo que as economias tradicionais tendem a desaparecer, em vez de
evoluírem tecnologicamente, a qualidade de vida urbana e rural deteriora-se
exponencialmente e os cidadãos das idades produtivas deslocam-se; os jovens que
atingem grau universitário não retornam ao local de onde saíram, deixando os
lugares vazios com a população a envelhecer e a ficar não apenas privada dos
seus familiares mais jovens e, muitas vezes, à mercê da caridade, sem qualquer
qualidade de vida e de ambiente que, despovoado, igualmente se degrada ,
tendendo os lugares a morrer, assim como os patrimónios que lhes são inerentes,
com o envelhecimento dos que aí permaneceram.
E considera-se oportuno apontar que os
grandes “elefantes brancos” foram sendo todos abandonados, geraram habitantes
ocasionais a viver em periferias degradadas, sendo que, por exemplo, a EXPO 98,
mesmo continuando a não ser igual ao verdadeiro "desastre” da EXPO de
Sevilha, é no entanto uma aberração arquitectónica e ecológica construída no
leito de cheia do rio Tejo, um paredão que o esconde e privatiza, e é, assim,
mau urbanismo e teremos ainda que esperar para saber se a natureza não virá um
dia reclamar o que lhe pertence (como sempre faz mais tarde ou mais cedo) e
que, a ter sido planeado sem aquela obcecação de betão, poderia ter gerado um
complexo urbano e de serviços, animadores da zona oriental da cidade sem
privatizar a paisagem do grande rio.
Os decisores de planos de desenvolvimento
não têm acertado, por não terem uma estratégia de desenvolvimento global e os
planos de desenvolvimento parciais têm falhado e apenas retalhado os
territórios, falhando assim os aglomerados urbanos que têm sido gerados e que
no final geram incultura para todos porque muitos "saberes" deixaram
de estar manifestados no habitar.
Arte, beleza e qualidade do ambiente
fazem parte da memória "ADNénica" dos homens, que embora não tendo
tido noções modernas de crescimento e desenvolvimento, nunca destruíram
territórios, ecossistemas e vida.
Lisboa – Bairro de Santo Amaro e Olivais
Norte – Encarnação
Maria.Celeste.d'Oliveira.Ramos
com a
colaboração e imagens de António Baptista Coelho