29 maio 2019

LISBOA CIDADE - PALCO DE BELEZA / TAMBÉM ASSIM SE FAZ CIDADE, NO RIO… A CAMINHO DO MAR

LISBOA CIDADE - PALCO DE BELEZA
Maria Celeste d'Oliveira Ramos - arqtª-paisagista

Como é bela a velha cidade que parece mais feliz quando algo de novo e grandioso nela se manifesta e faz com que todos os seus habitantes desçam colina a colina quais regatos que desaguam no grande rio a ver o que nele acontece de fantástico e do rio, mais uma vez, se enamorem.

Feliz é a cidade que se situa à beira de estuário de Rio, matéria-primordial de Civilização, como foi a do Nilo que deu origem a uma das mais inteligentes e perturbadoras das civilizações antigas, dela perdurando até nós fábulas, não apenas de Cleópatra, mas essencialmente das suas pedras transtornadas-arte-religião-cultura-história-saberes-mistério, hoje continuando a ser, não apenas local mítico, mas permitindo, ainda agora, desenterrar do mar esfinges após esfinges, quais "MonaLisa" do passado, pedras sagradas da sabedoria da beira-do-deserto e tal que a sua grandeza nunca se apagou, sendo hoje local de peregrinação-turística na demanda de saberes antigos e de mistério nunca desvendado.
Fig. 01

Fig. 02

Feliz Lisboa do lendário rei de Ítaca que a baptizou e onde, para além do número sagrado - o sete - o número das suas colinas, mora gente que ama a sua cidade e o seu rio e o veneram tão só para, inocentemente e alheados da história, pescarem o mais humilde peixinho ou assistirem ao grandioso espectáculo dado pelos mais belos e gigantescos veleiros – nas Tall Ships’ Races 2006 - engalanando o Rio e a Cidade que forneceu, para agradecer a sua visita, o clima mais esplendoroso e até o vento necessário e a Luz, sempre a luz desta "Lusitânia" para que pudessem brilhar mais neste estuário maior da Europa, de água sempre corrente e sem gêlo e de imensa biodiversidade, parte da Rede Natura do continente e património do mundo, porque este mundo moderno que somos "partiu daqui."
Fig. 3 e 4


Bela a cidade com o rio como paisagem, com escala para ser detectado pelas lentes inquisidoras dos satélites mundiais, paisagem única e mítica de onde partem e onde aportam constantemente todos os navios do mundo.
Feliz o habitante que pode olhar o rio da janela de sua casa ou da rua do seu bairro ou que, em dia de descanso, desce até à beira rio e, sem saber, procura "as Tágides minhas" que o poeta desencantou dando ao país memória eterna e eternizada porque, também ele, um dia daí partiu para longe e regressou com palavras-escritas da sua epopeia que se confunde com a epopeia do país de marinheiros e é raíz, na sua forma-renascentista-original, que continua a ser essência lusitana.
Feliz a Cidade-palco de beleza e de história de toda a humanidade, para sempre a capital do primeiro gesto que tornou o mundo global e redondo ao desbravá-lo, correndo mares fora e dando identidade a continentes até aí desconhecidos.

Como que reavivando essas memórias, mais uma vez, pelas águas foi agora materializado esse passado comum com o esplendor exibido pelos Veleiros mais belos do mundo lembrando aos homens que é a PAZ entre eles que é preciso anunciar a todas as gerações para serem mais humanos e felizes, porque já todos os mares foram desbravados e conquistados como que anunciando que falta apenas conquistar o Homem-Global.


Feliz o Rio que tal "mensagem" transporta hoje, como transportou nas brancas velas pandas com a Cruz de Cristo, Ele, que veio à Terra anunciar o Amor e a Paz.
Fig. 5

Fig. 6

E assim se fez e continua a fazer cidade-cidadania-global, nas águas do rio que corre doce e tranquilo para o mar.
Mítica Cidade de mítico Rio e de gente que um dia sonhou abrir as estradas do mar para homens e continentes e semear aquilo em que acreditava.

PS – Um lisboeta entrevistado hoje, à beira rio, para o noticiário televisivo das 20:00, disse que estava, por um lado, maravilhado com o que via mas que, por outro, lamentava olhar os Veleiros e nada saber deles e muito menos da história do país do tempo dos descobridores.
Fica aqui esta "nota triste" de uma cidade que esteve "feliz" por alguns dias de emaravilhamento pela beleza dos "visitantes" do seu Rio.
Maria Celeste d'Oliveira Ramos
Lisboa, bairro de Santo Amaro, 23 julho 2006


Fotos 1 a 6 - M.J.Eloy – Tall Ships’ Races 2006, Tejo – Lisboa
1. Doca de Alcântara e Navio Escola ‘Sagres’, 2006.07.21
2. ‘Sagres’ , Tejo, Lisboa
3. ‘Europa’ - detalhe
4. ‘Amerigo Vespucci’ - detalhe e Ponte 25 de Abril
5. ‘J. S. De Elcano’, Tejo, Lisboa
6. ‘Stravos S Niarchos’, Tejo, Lisboa


TAMBÉM ASSIM SE FAZ CIDADE, NO RIO… A CAMINHO DO MAR
Maria João Eloy - arquitecta
Fig. 7

Fig. 8

 Fig. 9

Fig. 10

Fig. 11

Fig. 12

Uma doca de acessos controlados,
de seguranças discretamente armados,
pede cartões na suspeita de identidades.
O festival transborda o rio para o cais,
num deslumbre de objectos pesados,
etereamente flutuantes.
A água plena de utilidade.
O Sol explicando-se melhor.
A escala ignorada todo o ano.
Nós sufucando de crise e inanição.
Eles inchados de soberba e precisão.
Governados humilde e habilmente.
Emprestados ao bulício citadino.
Ignorantes da sua administração.
Tradições de antanho, perícias tamanhas.
Azuis, brancos, pretos e amarelos.
Solidariedade intergeracional.
Proposta para prémio da paz.
108 metros, 100, 50, 10 e tais.
Velas, mastros, cordames.
Um arrepio ao desfilar da Sagres.
Um não sei quê de brio.
Que bem vão em formatura.
Da proa à popa que longe fomos.
Hoje deslumbrados restamos.
A guerra já aqui tão perto.
Eles afinados, emproados.
Nós preocupados com o chaço velho.
A cidade engalanada, mascarada.
Bem usada e abusada.
Vida, cultura, desporto.
Foguetório, homenagens.
Faça turismo por cá.
Dividendos vários.
Dentro de dois anos, mais haverá.

Também assim se faz cidade,
no rio… a caminho do mar.
Trata-se do 50º aniversário
da Regata dos Grandes Veleiros.
Prontos a zarpar, que se faz tarde.


Maria João Eloy
Lisboa, 23 Julho 2006

Fotos 7 a 12 - M.J.Eloy – Tall Ships’ Races 2006, Tejo – Lisboa
7. Largada no Tejo da Regata dos Grandes Veleiros, 2006.07.23
8. ‘Amerigo Vespucci’, Lisboa e Ponte 25 de Abril
9. ‘Christian Radich’, Tejo, Lisboa
10. ‘Europa’ – detalhe
11. ‘Dar Mlodziezy’, Tejo, Lisboa
12. Acesso ao cais da Tall Ships’ Races na Doca de Alcântara e ‘Sagres’

24 maio 2019

A CIDADE QUE SOU E TENHO EM MIM


A cidade é como a vida – está dentro de mim e sou dela pertença.
Ao atravessá-la a caminho da escola ou do local de trabalhar ou, simplesmente, de ir daqui para acolá, recolhem-se imagens codificadas que vão para uma zona do cérebro, arquivo da memória imagética, como vão as imagens de qualquer outra vivência no espaço familiar.
A vida é um processo de acumulação de imagens (3) anexando a respectiva emoção que, frequente e tardiamente, já não é uma memória mas uma recordação, baralhando o "tempo" cronológico mas deixando uma sucessão de "pegadas."
A cidade educa e eleva, ensina e informa estabelecendo um relacionamento eu-cidade-espaço-acontecimento, transmite alegria e/ou dor, nem que seja a provocada pelas enxurradas e pelo fogo, porque a cidade não é apenas o espaço físico impessoal e impessoalizado, mas sim o que nele se vive e se troca.
A Cidade como a Casa é palco de-vida-acontecer e tal que, ao viajar-se para longe se traz, igualmente, a memória do lugar habitado por outrém, colhida emocional e culturalmente e vivida como se o homem e o espaço fossem impossíveis de dissociar, tornando-nos mais ricos e conscientes ao adquirir mais experiência vivencial e matéria de troca, porque viajar é por si só aprender.
Uma cidade abandonada pelos habitantes é uma cidade fantasma que o vento e o tempo devoram ficando só ruínas, ou nem isso.
A cidade vive porque nela se habita com-a-vida-toda e será sempre o espelho multi-facetado das vivências humanas e das estações do tempo.
A cidade é o espaço de crescimento e desenvolvimento do ser humano que vai construindo memória colectiva como herança de cada geração, para a legar às gerações que vão nascendo.
Lisboa é a minha Cidade - é a cidade que eu tenho cá dentro – porque a gente pertence às cidade e às vilas e a cidade pertence à gente numa interacção constante.
Como as pegadas que deixamos na vida dos outros, a cidade deixa em nós matéria de identificação do que somos e que transborda para não importa que habitante urbano ou rural.

Lugar que pode ser também cidade do ESQUECIMENTO - cidade que esquece os velhos porque os DESACTIVA, ou não valoriza os que, sendo portadores de handicap, são também cidadãos activos, criativos e produtivos
E porque a cidade é o espaço de abrigo que fornece habitação, cultura, religião, serviços, jardins e bem estar, é também o lugar que dá prioridade ao automóvel sobre o peão – que se limita a fornecer espaços lúdicos só para os teenager e não para os velhos, num ambiente que se torna progressivamente hostil e incomunicável com o habitante, perdendo o sentido de cidade e das funções para que foi contruída – as funções dos cidadãos.
Esta Cidade de hoje é a cidade onde MORA o quê ?? A alienação ? O esquecimento da origem da sua função ?? O esquecimento da criação de lugares com "espírito do lugar" e espírito de criar condições de vizinhança, de bem estar e de alegria e de um orgulho de pertença de nela habitar.
(3) Na esteira de George Steiner: “Não é o passado literal que nos governa, excepto, talvez, muma acepção biológica. São imagens do passado: com frequência tão intensamente estruturadas e tão imperativas como os mitos. As imagens e as construçõs simbólicas do passado encontram-se impressas, quase à maneira de informações genéticas, na nossa sensibilidade. (…)” – “No Castelo do Barba Azul – Algumas Notas para a Redefinição da Cultura” (1971), Relógio d’Água, 1992, p 13
Maria Celeste d’Oliveira Ramos, 4 junho 2006
Fotos: ‘O Rio como Paisagem’, Doca de Santo Amaro, Lisboa, 2006 – MCOR.
REGRA DE OURO: HABITAR – Maria João Eloy
A utilização do termo ‘habitar’ traduz tradições e pressupostos contraditórios, reveladores do estatuto dos habitantes de lugares em regime de paz, que é irreconciliável com o dos que sobrevivem nos lugares em guerra; pensar na qualidade do ‘habitar’, releva o significado de pertencer ou não a uma comunidade, de ser ou não reconhecido como habitante, de viver como deslocado e emigrante ou de, paulatinamente, permanecer há gerações no mesmo território.
Além destas situações, em que os envolvidos se empenham na sua cidadania, sempre se puderam encontrar, no ‘habitar’, os sintomas de não pertencer e não acreditar, reflexo das singularidades da vida nua que ignora o implacável poder soberano da cidade, “a coisa mais universal, a coisa mais partilhada (...)” porque “com a cidade temos a impressão de descobrir o mundo tal qual ele é, ‘em directo’, de sermos actor e observador, exploradores de uma selva viva que constitui o próprio corpo da sociedade.”(4)
Reflectindo sobre a esperança daqueles a quem restam tentativas reiteradas de aceder a condições precárias de ‘habitar’, recorrerei à noção de irreparável de Agamben, que não retira nobreza a esse modo de ‘existir’: “O irreparável não é nem uma essência, nem uma existência, nem uma substância, nem uma qualidade, nem um possível, nem um necessário. Não é propriamente uma modalidade do ser, mas é o ser que se dá desde logo na modalidade, é as suas modalidades. Não é assim, mas é o seu assim.” (5)
À necessidade de transmissão, no mundo civilizado, das regras de ouro de ‘habitar’ – aparentemente ausentes do ‘habitar’ precário de todo o tipo de desalojados – tem-se vindo a contrapor uma valorização do papel da intuição, do imaginário, da sensibilidade e do corpo, numa autoregulação indomável que lança uma disparidade de desafios à pesquisa dos conceitos normalizados para projectar habitação; através de persistentes e trangressoras reconfigurações das regras do ordenamento territorial, do urbanismo e da arquitectura, assiste-se à tentativa de “combater o niilismo do mundo moderno: o abstracto lugar onde não há lugar da metrópole, a destruição do mundo interior do espírito e a impossibilidade de morar de um modo autêntico, no sentido heideggeriano do termo”, como o entende M. Cacciari (6).
É neste sentido que, ao reproduzir a lamentação de Gabriel o Pensador em “O resto do mundo” (7), pretendo ir além da invocação do folclore urbano das metrópoles, interrogando-me sobre o valor dos recursos criativos de grande parte da humanidade; de ‘gente’ que, vivendo fora dos limiares do ‘habitar’ regulamentado dos prósperos centros urbanos, se confronta com a linguagem estrangeira da cidadania participativa, sem lhe poder retorquir, senão através do discurso musical e poético – entre outras formas, das menos violentas, do discurso de ‘existir’:
O resto do mundo
Eu queria morar numa favela (...)
O meu sonho é morar numa favela
Eu me chamo de chêroso como alguém me chamou
Mas pode me chamar do que quiser seu dotô
Eu num tenho nome
Eu num tenho identidade
Eu num tenho nem certeza se eu sou gente de verdade (...)
Eu sou o resto O resto do mundo
Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo
Eu sou... Eu num sou ninguém (...)
Eu sou sujo eu sou feio eu sou anti-social
Eu num posso aparecer na foto do cartão postal
Porque pro rico e pro turista eu sou poluição
Sei que sou um brasileiro Mas eu não sou cidadão
Eu não tenho dignidade ou um teto pra morar (...)
Eu sei que a maioria do Brasil é pobre
Mas eu num chego a ser pobre eu sou podre!
Um fracassado Mas não fui eu que fracassei
Porque eu num pude tentar
Então que culpa eu terei
Quando eu me revoltar quebrar queimar matar
Não tenho nada a perder Meu dia vai chegar
Será que vai chegar? (...)
Eu num sou registrado Eu num sou batizado
Eu num sou civilizado eu num sou filho do Senhor
Eu num sou computado eu num sou consultado
Eu num sou vacinado Contribuinte eu num sou
Eu num sou comemorado eu num sou considerado
Evitando alongar esta interrogação, onde não cabe uma conclusão, escolheria o topos ou clichê que é conhecido na tradição como locus amoenus (lugar ameno, recanto aprazível) para, tentando não-entender e não-classificar os lugares de ‘habitar’ atrás exemplificados, perscrutar neles o ameno, o aprazível e o belo …
(4) Portzamparc, C. de - Prefácio a “ Vers la troisième ville ? ”, Mongin, Olivier; Hachette, 1995 pp. 8, 9.
(5) Agamben, Giorgio – “A comunidade que vem” (1991) - ed.Presença 1993, p 73.
(6) Cacciari, Massimo – “Architecture & Nihilism: on the philosophy of modern architecture”, London, Yale University Press, 1995.
(7) Excertos do texto da faixa 10 “O resto do mundo”, Gabriel o Pensador - CD, Chaos, 1993.
Maria João Eloy, Junho 2006
Fotos:
‘Um rectângulo de ouro no Rio de Janeiro’, 2003 – Vera Eloy.
‘Ordenamento do território entre Pemba e a ilha do Ibo’, Moçambique, 2005 – Margarida Nicolau.
‘O Resto do Abandono’, Ilha do Ibo, Moçambique, 2005 – Margarida Nicolau



16 maio 2019

QUALIDADE DO AMBIENTE URBANO, II – O JARDIM E A CIDADE, ONTEM E HOJE

A natureza esteve sempre presente e às portas da cidade, como é o caso do local onde Cristo meditou antes de ser crucificado: o Monte das Oliveiras.
Sempre os Grandes Parques e Jardins estiveram ligados à realeza e ao clero e às classes possidentes (asvillas italianas do quatrocento e cinquecento), a maioria dos quais, nos países em desenvolvimento, foram sendo sucessivamente doados à população com o crescimento quase imparável da cidade com a expansão provocada com o advento da era industrial e o afluxo dos rurais a novas formas de trabalho nas periferias urbanas e que não haveria retorno.
Parques e Jardins eram assim absorvidos no interior habitacional, mas é só com o aparecimento de nova classe social, a do proletariado, que o jardim tem a marca de "público" (Passeio Público de Lisboa - ver e ser visto de Eça de Queiroz), tendo o primeiro Country Park sido construído no início do séc. XX com a Cidade Jardim de Ebnezer Howard (1), sendo da mesma época o Central Park, em N.Y. (2), desenhado conjuntamente pelo paisagista Frederick Law Olmstead e pelo arquitecto C.Vaux (3), o primeiro parque construído em solo municipal.
A população "anónima" não se importando em que estrutura urbana habitava, adquiriu assim direito público à natureza dentro da cidade, já que até aí tinha os espaços públicos das praças e adros das igrejas, dos largos de feira; rocios e corredoras, situados nas periferias.
A força da natureza dentro do ser humano e o apelo à sua presença próxima, ainda hoje se nota na casa mais pobre onde se pode observar encavalitado num muro qualquer, ou à porta, uma lata cheia de terra e de bem cuidadas flores como se fora uma riqueza e que altera profundamente e humaniza o pior dos ambientes do habitar.
As cidades cresceram, sobretudo com base num desenho assente sobre uma "grelha" reticulada impondo-se ao solo e com tratamento de taludes numa relação intencional de interior-exterior, embora em postura intimista, até que a partir do século XVI o exterior vira-se para a paisagem envolvente, estrutura que se perpetuou por séculos.
Lembremos a estrutura urbana das cidades de beira-mar de Pompeia e Herculano (também com o seu fórum) existentes entre os anos 80 a.C. e 79 d.C. que o Vesúvio sepultou, cuja "grelha" se vai expressar na Baixa Pombalina plana ou no Bairro Alto alcantilado ou, ainda, em Campo d'Ourique ou nas Avenidas Novas, e por todo o espaço urbano do mundo, sendo Savaahna, na Virgínia do Sul, uma das mais geométricas e reticuladas cidades que alguma vez visitei, em que o "quadrado" do edificado rivaliza com o do ajardinado, público e privado, e em que as cérceas são baixas e a árvore é rainha, e se no início do século XX houve muitos adeptos do desenvolvimento do conceito de cidade ideal, eu diria que Savaahna assim poderia ser considerada, essa bela cidade à beira do Rio Savaahna (topónimo da tribo índia).

Mas teremos em paralelo o desenho da estrutura labiríntica como o do Bairro de Alfama (aberto) ou da cidade imperial amuralhada, de Fez, até com vários andares solo abaixo e aí, nos podemos perder na quase escuridão e aperto da Medina Velha, onde a qualidade do ambiente é ainda insalubre e de intoleráveis odores, porque no chão se misturam os produtos do mercado e as célebres laranjas marroquinas, ao lado da bosta fresca do burro, apesar de, do exterior e de longe, se constatar uma implantação de excepcional beleza agarrada ao monte e a "desenhá-lo", em que o branco do casario apertado em muro espesso e alto, fica doirado ao pôr-do-sol e nos espanta de beleza por fora, tendo para isso, exactamente, um "percurso turístico do pôr-do-sol" a rodear a cidade.
Mas em Alfama é para nós mais inteligente o Labirinto porque tudo de passa ao sol, em que o casario se agarra ao relevo e vence os declives constituindo-se geomorficamente, tanto na habitação volgare como nos palácios e nos monumentos, de ruas estreitas e sinuosas mas onde ninguém se perde porque nos permitem ler bem os percursos desenhados e pontos referenciais, na colina que se "sobe", mas que também se desce pelas escadinhas que vão dar à beira do rio, por onde, todos os dias, sobem e descem as brisas quentes da manhã e frescas da tarde e onde os velhos se encontram à porta e as crianças brincam sem cuidado, mas protegidos, o mesmo sucedendo na Judiaria de Sevilha, mas em situação plana.
Alfama, colina virada para o rio, janelas viradas para o sol e para a luz e calor. Estrutura simbólica de ruas estreitinhas visando duplamente unidade física e espiritual não apenas para refrescar da canícula, mas para promover a proximidade humana e o convívio nas ruas que, por vezes, se desenvolve, aqui e ali, numa habitação, numa loja térrea, ou num largo em espécie de "Ágora", como consequência da sua convergência, sendo que na cidade cristã a convergência se vira para a catedral, mas Alfama tem tudo isso numa assimilação e síntese de todos os desenhos urbanos e formas do viver.
E nesses "espaços que parece que sobram", mais pequenos, também lá se poderá encontrar uma arcada, um chafariz ou uma árvore ou apenas o larguinho que nos detém e onde se faz encontro e acontecimento no quotidiano ou nos dias festivos marcados no calendário, árvore que pode também aparecer onde a escadaria se desenrolou declive abaixo alargando patamares - mas que bonito parecendo como se fora "ocasional."
Igualmente as cérceas, mesmo as mais altas, se vão encostando e desenhando o "sky line" como se se lesse que pendente tem cada colina e que continuamente deixa ver o Rio, e que também são rasadas pelo vento que corre livre sem labirintos e remoinhos e limpa o ar que foi sendo poluído, desfazendo eventuais "ilhas de calor ou de frio", como se cada pedaço concêntrico ou geométrico, ou linear, fosse idêntico resultado da construção de "formas" que deriva da contínua acção da criatividade humana que em cada tempo histórico nos dá a ler uma "ordem" feita em função do local, seja ele local do poder, dos centros de interesse comercial ou cultural, ou simplesmente do habitar.
E sendo Lisboa ainda uma cidade de colinas não é possível ignorar os espaços de jardim de cada uma e que são verdadeiros miradouros para o rio e para o pôr-do-sol, mas sendo que é exactamente em Alfama que na cerca moura um miradouro permite ver o mais belo luar em noite de lua cheia de Agosto em que o rio, na sua máxima largura fica todo de prata, espectáculo que certamente será conhecido penas por quem lá mora, mas que nem sequer está num roteiro turístico, esse percurso dos miradouros para olhar o rio, o pôr-do-sol e da Lua cheia a pino, valores de grande qualidade de ambiente urbano, pôr-do-sol que rivaliza com o de Istambul (à mesma latitude de Lisboa), mira-rio que rivaliza com Istambul na borda do mar da Mármara (Corne d'Or), atmosfera de Lisboa que, tão diferente, parece a "mesma".
Seja por esta razão, seja porque certas cidades nasceram a partir de áreas amuralhadas de que acabam sempre por extravasar, mesmo construindo-se outra mais tarde como é claro o caso de Lisboa, esta construção com intenção de defesa tanto em situação plana como montanhosa mais frequente na Idade Média, muralhas que continham por vezes formigueiros dos rurais que os senhores deixaram entrar e proteger-se das guerras que acompanham sempre a história do homem e das cidades, a cidade tem uma estrutura de desenho que é função da história e das circunstâncias
Hoje não há muralhas, nem sequer há fronteiras, pelo menos Europa fora.
Mas falando em qualidade do ambiente urbano a partir dos núcleos que deram origem à cidade, se calhar até podemos dizer que as fortificações portuguesas dos Descobrimentos, espalhadas pelo litoral de todos os mares, ou na maior interioridade da selva da América do Sul, são igualmente exercícios de urbanismo inicial cuja forma resulta do promontório onde se instala sendo o forte de Ceuta, de S. Filipe, uma das mais extraordinárias e engenhosas obras de arte portuguesa que, igualmente, deixa aproximar e conter navios a proteger, quando perseguidos no mar.
Também Madrid, cidade plana, teria "nascido" no castelo amuralhado, de Manzanares perto do rio do mesmo nome.
A muralha de função temporal para protecção do litoral, ou de castelo no topo de um monte era igualmente protecção no interior plano de qualquer território, fortes de defesa dos centros de acolhimento e trocas comerciais da Estrada da Seda ou da Estrada das Especiarias.
Mas são igualmente desenhados com sentido urbano os locais de peregrinação como os Karavonzarai do mundo muçulmano, ou do nosso, como Santa Luzia e Sameiro, da Senhora do Bom Jesus do Monte, ou cabo Espichel (promontorium barbaricum), e tantos outros que abundam no nosso país nos locais mais recônditos e que não conhecemos; urbanização religiosa que representa património monumental e memória da história – dos usos e costumes e crenças do homem religioso que são património monumental edificado e intemporal do mundo.
Exemplos como Ávila, Lisboa ou Óbidos, Évora ou Beja, de muralhas de planta irregular e de panos rectilíneos ou côncavos, ou Almeida, Elvas e Valença, de muralhas em desenho de estrela perfeita, algumas de muros duplos, sendo facto que todas cresceram transbordando-se sempre em aglomerados periféricos readquirindo novo desenho, tantas vezes tão caótico, como se não pudessem ter colhido nenhuma inspiração através da essência e espírito desses lugares antigos e são relíquias urbanas do génio humano, memória também da história de fazer cidade e construir habitar.
Sempre o tempo e as circunstâncias (porque o homem é o homem e a circunstância) obrigaram a interferir no desenho da estrutura das cidades antigas com o crescimento demográfico sem directivas urbanas específicas, em que era cada vez mais difícil o controlo do assalto pelos ladrões, para além da insalubridade que o crescente amontoado gerava, que levou, em meados do século XIX, o maire de Paris, o barão de Haussman (4) a rasgar amplas ruas rectilíneas, servindo ao mesmo tempo o policiamento e a limpeza natural, com o correr do vento, do meio urbano poluído e pesado.
Mas qualquer que seja o desenho da estrutura urbana desde o reticulado mais interessante ao labiríntico, ou "celular", a rua é "o sinaleiro."
Para além da imperiosa e urgente necessidade de um renascimento quanto a uma terceira forma de planear a cidade, muito ajudaria que politicamente os centros de produção económica e cultural se deslocalizassem para o interior onde o êxodo foi forçado na década 80/90 e que no país provocou a III explosão incontrolada da cidade (a primeira na era Industrial e a segunda originada por uma das maiores pontes aéreas humanas com a vinda de quase um milhão de portugueses habitantes dos países lusófonos em 1976/78), não retirando a ninguém o direito de morrer no local onde nasceu para que, semelhantemente ao que disse o velho abandonado que “a vida escureceu”, não se diga o mesmo da cidade – para que não morra e com ela a sua função e cultura – cidade sempre espelho da saúde física e cultural dos habitantes, mas certamente com maior relevância quanto aos decisores.
Muitos dos problemas de qualidade do ambiente urbano nas grandes cidades do país, sobretudo do litoral, encontrariam a solução nas belas cidades e vilas históricas do interior que foram despovoadas e que, ironicamente, também andam agora a crescer mal, como se a cultura deteriorada na grande cidade fosse exemplo a tomar sem capacidade crítica.
O contínuo verde urbano na sua dimensão de estrutura verde principal e secundária, tem de voltar a ter a porta aberta ao continuum naturale para que se mostre ali às "portas da Cidade" que tem sido tapado e interrompido drasticamente por muralhas de floresta de betão, que representa a maior perversão da Carta de Atenas, que pretende aumentar área urbana permeável e ajardinada, libertando-a com a construção em altura.
E se o país pode re-viver novamente grandes acidentes naturais como as enxurradas catastróficas e mortais de Novembro de 1983 e de 2001, se há meia dúzia de anos a europa do norte vive os Invernos sobretudo depois dos degelos, debaixo de água, não chegando a recuperar os estragos de ano para ano, a par das alterações climáticas mundiais que se tornaram incontroláveis, não acrescentemos as alterações provocadas pela inconsciência e ligeireza de decisões de impermeabilização do solo decorrente da construção de infraestruturas e habitação nos locais a reclamar pela chuva.
A qualidade do ambiente não se circunscreve, porém, à qualidade adentro do espaço urbano, mas a toda a situação que respeita aos habitantes e que lhes permite melhorar em termos culturais, económicos e sociais para que, também, a qualidade de vida melhore e se evolua globalmente.
Pelo menos nos últimos 30 anos o crescimento económico postou-se, essencialmente, no construir com betão e betuminoso, infraestruturas necessárias mas até, por vezes, de qualidade duvidosa, que embora podendo ser factores que conduzem a "desenvolvimento", o certo é que o desenvolvimento tem de se reflectir na qualidade de vida global de todos os cidadãos e lugares e, como tem sido referido, as vias rápidas serviram para fomentar o despovoamento e a migração interna na procura de "emprego" e de infraestruturas de assistência de vária ordem sem as quais não há qualidade de vida mas apenas "abandono", provocando-se assimetrias de centros de desenvolvimento e povoamento nunca antes acontecido no país nem nas épocas de maior pobreza (anos 50/69), que levaram a movimentos de emigração para os mais variados países.
Qualidade do ambiente implica qualidade de vida do espaço físico global e dos cidadãos, e também pertencem à memória colectiva os grandes planos de desenvolvimento do Cachão em Trás-os-Montes, o Plano de Sines, o Plano do Alqueva e, agora, os planos de transportes da OTA e do TGV, planos que têm sido eternos “elefantes brancos” do País, que embora gerem trabalho e emprego temporário, não têm sido desenvolvidos até à sua respectiva finalização, para além de não terem provocado sinergias conducentes a uma oferta de trabalho contínuo e à desmultiplicação de um grande leque de actividades económicas e culturais em cada zona específica, contribuindo assim para a sua contínua renovação, em vez de uma contribuição para uma sua degradação funcional e para o envelhecimento da população local – os que quiseram ficar e resistir até à mais triste situação de que é exemplo Bragança, há bem pouco tempo cidade radiosa, e actualmente com 70% de idosos e, a este e a outros casos idênticos, muitas aldeias, vilas e cidades se lhes seguirão, já que dos 10 milhões de habitantes nacionais gravitam na Grande Lisboa quatro milhões e dois milhões no Grande Porto, dizendo isto muito do deserto humano que caracteriza boa parte do resto do território.
Mas em vez da diversificação de factores e agentes económicos, pelo contrário, as actividades económicas centram-se bastante num único sector, o dos transportes, seguido de algum comércio e serviços, sendo que as economias tradicionais tendem a desaparecer, em vez de evoluírem tecnologicamente, a qualidade de vida urbana e rural deteriora-se exponencialmente e os cidadãos das idades produtivas deslocam-se; os jovens que atingem grau universitário não retornam ao local de onde saíram, deixando os lugares vazios com a população a envelhecer e a ficar não apenas privada dos seus familiares mais jovens e, muitas vezes, à mercê da caridade, sem qualquer qualidade de vida e de ambiente que, despovoado, igualmente se degrada , tendendo os lugares a morrer, assim como os patrimónios que lhes são inerentes, com o envelhecimento dos que aí permaneceram.
E considera-se oportuno apontar que os grandes “elefantes brancos” foram sendo todos abandonados, geraram habitantes ocasionais a viver em periferias degradadas, sendo que, por exemplo, a EXPO 98, mesmo continuando a não ser igual ao verdadeiro "desastre” da EXPO de Sevilha, é no entanto uma aberração arquitectónica e ecológica construída no leito de cheia do rio Tejo, um paredão que o esconde e privatiza, e é, assim, mau urbanismo e teremos ainda que esperar para saber se a natureza não virá um dia reclamar o que lhe pertence (como sempre faz mais tarde ou mais cedo) e que, a ter sido planeado sem aquela obcecação de betão, poderia ter gerado um complexo urbano e de serviços, animadores da zona oriental da cidade sem privatizar a paisagem do grande rio.
Os decisores de planos de desenvolvimento não têm acertado, por não terem uma estratégia de desenvolvimento global e os planos de desenvolvimento parciais têm falhado e apenas retalhado os territórios, falhando assim os aglomerados urbanos que têm sido gerados e que no final geram incultura para todos porque muitos "saberes" deixaram de estar manifestados no habitar.
Arte, beleza e qualidade do ambiente fazem parte da memória "ADNénica" dos homens, que embora não tendo tido noções modernas de crescimento e desenvolvimento, nunca destruíram territórios, ecossistemas e vida.

Lisboa – Bairro de Santo Amaro e Olivais Norte – Encarnação
Maria.Celeste.d'Oliveira.Ramos
com a colaboração e imagens de António Baptista Coelho





09 maio 2019

QUALIDADE DO AMBIENTE URBANO, I – A NATUREZA ÀS PORTAS DA CIDADE

Creio que se pode situar na Grécia Clássica o início do conceito de ordenamento urbano que foi adquirindo diferentes concepções ao longo da história em que homens não pararam as guerras de conquista territorial, fazendo desaparecer cidades e outras reconstruídas, até haver mais estabilidade sobretudo no desenho de fronteiras físicas.
Por outro lado várias circunstâncias de natureza climática, em regiões de clima desértico, faziam afluir aos centros urbanos os habitantes dispersos, sobretudo porque, embora frequentemente captada a muitos quilómetros de distância, era nas cidades que se tinha acesso à água provocando explosão demográfica e de centros de comércio e cultura.
Também as guerras mais recentes da Idade Média obrigaram à construção de edificados densos e tortuosos dentro de muralhas, o mesmo sucedendo com as duas guerras mundiais em que cidades inteiras foram quase totalmente destruídas, mas logo levantadas como na europa central, levando a recuperação já com novos conceitos de ordenamento também humano contando com a existência do automóvel e com áreas para uso exclusivo de peões e geralmente áreas de comércio e de cultura.
Esse conceito viria, porém, devido ao fenómeno da industrialização no fim do séc. XIX, a ser revisto, considerando-se a partir daí o mais moderno conceito de ordenamento urbano sendo o mais referido o arquitecto Nash que executou o Great Plan de Londres, contemplando alteração e evolução das funções da cidade, e tal que surgiriam novos conceitos e designações de cidade, a cidade-satélite e cidade-nova e mesmo a Cidade Nova industrial, uma das designações mais modernas centrada nos aspectos de funcionalidade especificamente industrial, da mesma forma que novas cidades apareciam centradas essencialmente na função administrativa, como é o caso de Nova Delhi e de Brasília, tendo esta também a função de "povoamento" do interior brasileiro - o planalto do Serrado, situação que entretanto provocou grandes dramas humanos e sociais porque "a família foi forçadamente separada" do Rio de Janeiro (já segunda capital -1ª. capital Olinda-Recife) para milhares de quilómetros de distância alterando drasticamente a vida quotidiana por terem de deixar para trás a maioria dos familiares, vizinhos e amigos e mesmo ambientes e hábitos.
Ao visitar a cidade de Brasília por duas vezes, com 10 anos de distância, a cidade fantasmagórica e triste, da primeira visita com áreas ainda em construção, era ao fim de 10 anos muito diferente porque as árvores já tinham algum porte, outras plantas ornamentais cresciam e floriam nos jardins e, sobretudo, já tinham também nascidos crianças.
Em paralelo, nos arredores, a cidade de barracas dos trabalhadores da construção de Brasília tornou-se uma "cidade paralela" onde ficou grande parte dos operários e que foi crescendo, e embora sem estrutura urbana organizada, parecia "mais humana" porque a cada passo se podia parar num restaurante, ou encontrar um amigo e beber um cafezinho mesmo ali ao lado, ou simplesmente parar numa rua de dimensão "normal" e conversar ou, ainda, parar e olhar quem passa.
Com o Plano de Londres preservar-se-ia o núcleo urbano antigo e denso, centro a partir do qual "nasciam" vários círculos concêntricos onde se construíam controladamente a Cidade Nova ou Cidade Satélite, mas integrando todos os palácios e parques e Jardins, e área agrícola, nascendo, assim, igualmente, o conceito de "green belt", conceito que mais tarde transmigraria para Paris com as cidades de "banlieu" e a sua "ceinture verte" abrangendo o Bois de Boulogne, o Bois de Vincennes, Saint Germain-en-Laie, e Buttes-Chaumont entre outros.
Este conceito foi igualmente adoptado por Moscovo e pretensamente em Lisboa mas sem qualquer sucesso porque em quase todas as "quintas" e palácios com espectaculares parques e jardins de Benfica e Loures, Caneças e Lumiar, se construíram urbanizações sem qualquer plano de ordenamento urbano e viário. O que eram belíssimas áreas das franjas de Lisboa, constituindo hoje contínuo-edificado inimaginavelmente caótico e de mediocridade total a atestar o que sobretudo a partir dos anos 70 sucedeu à cidade organizada e bela para habitantes orgulhosos do seu burgo o que, por sua vez fez derrapar para o actual desmoronamento dos sujos bairros, alguns ainda em precário equilíbrio de desenho e estética, mas que dentro em muito poucos anos ficarão não apenas descaracterizados em termos da qualidade de ambiente e silhuetas, mas também com densidade de ocupação decuplicada.
Desta área de enlouquecimento e total descontrolo urbano e viário resta, em Lisboa, isolado como uma ilha, o Palácio do Marquês de Fronteira e Alorna e o seu belo parque e jardim, quase a única memória a atestar como foi toda a área envolvente da cidade que podia ser posta em paralelo com outras capitais europeias.
Em Portugal poderemos dizer que o conceito de cidade nova faria o seu primeiro ensaio no fim dos anos 60 do século passado com projectos do Gabinete Técnico de Habitação (GTH), com os Olivais Norte e Sul, com algumas ideias concretizadas em Chelas e, depois, com a Cidade Nova de Santo André, integrada no Plano de Sines do início dos anos 70, que não é no entanto nenhum exemplo de bom planeamento nem de desenho ou estética urbana, salvando-se no entanto o então construído – um dos 3 grandes parques programados – Parque Central de 11 hectares, único espaço público para uma área urbana programada para 40 mil habitantes. Com a extinção do Gabinete da Área de Sines que detinha a administração de 84 mil ha, a expansão urbana posterior "não fez história."
O Grande Plano de Londres de Nash determinava que o contínuo urbano integrasse harmoniosamente o contínuo natural envolvente. Mas "reza" a história das cidades novas e seus habitantes, que não é grande o agrado desses habitantes mesmo nas mais antigas, como é o caso das de Inglaterra, e muito menos das de França e perguntemos porquê: porque nem em todas existe urbanismo e desenho de arquitectura de qualidade.
Sem ter apropriado conhecimento académico ousarei dizer que a "arquitectura" do início do século XX ousou tanto em materiais e cores que se distanciou das imagens-memória dos homens e em vez de tranquilidade e paz, pelo menos para o "olhar", se impôs pelo negativo.
As fachadas de cada rua, seus materiais e cores, determinam, frequentemente, comportamentos inconscientes de mal-estar crescente, fazendo dessas cidades-novas locais de morar mais do que habitar e tornam-se focos de tensões, sendo que os habitantes vivem em constante comparação com a humanizada e urbanisticamente aconchegada imagem-tipo dos antigos núcleos citadinos.
Mas para já são áreas onde não há turismo nem interno nem internacional por não haver algo de profundamente atractivo e poderemos eventualmente dizer que, por exemplo, a recente Casa da Música do Porto passou a ser um das razões de passear pela Av. da Boavista e ir descobrindo melhor essa via da cidade que é, essencialmente, um acesso viário ao centro da cidade.
Se tentarmos avaliar a qualidade do ambiente urbano no mundo antigo, não será fácil fazer paralelo com o de hoje, sobretudo porque a civilização industrial trouxe problemas difíceis de conciliar com a vida normal dos habitantes, mas trouxe porém a tecnologia para lhe dar soluções ligadas à distribuição generalizada de água e de electricidade, ao saneamento básico e ao tratamento de efluentes urbanos e industriais, para além de novos materiais e diferentes técnicas construtivas, algumas que hoje se procura recuperar quando se trata de restaurar centros urbanos históricos que também "não resistem" aos materiais actuais como o betão e o cimento, embora este material já tenha sido inventado e utilizado na Roma Antiga, mas com características diferentes.
Também, praticamente até à era industrial, as cidades eram de pequena ou média dimensão pelo que o campo e a natureza estavam ali, às “portas” da cidade, ou ao alcance da vista do alto das muralhas que se debruçavam sobre o campo envolvente onde habitavam os rurais que ainda não se tinham deslocado, maciçamente, para as periferias das cidades onde começavam a instalar-se unidades fabris.
É entretanto considerado que as cidades abrigando à volta de 40 mil habitantes são as mais importantes porque solidificaram a civilização, sendo a mesma a raíz (grega) das palavras cidade e civilização.

Mas pode-se reportar também à antiguidade a semente do saneamento com a existência de esgotos urbanos e com a condução de água aquecida para as habitações das populações privilegiadas, para além da existência das termas e banhos públicos, sendo que as águas minero-medicinais eram consideradas dádiva dos deuses na Grécia e Roma Clássicas, bem como havia os espaços Públicos como a Ágora dos gregos, e o Fórum romano, locais de excelência do encontro, sem que tivessem sido esquecidos os locais de recreio em honra dos deuses como os estádios para os Jogos Olímpicos e Píticos, ou os espaços culturais representados pelos teatros e, ainda, para a população em geral, como o Coliseu de Roma dopanis et circus, situação que é hoje motivo de peregrinação turística pelos países que não destroem as memórias do passado, mesmo que em ruínas; sendo também, em tempo de Páscoa, o percurso papal de celebração das 14 estações – caminho de Jesus Cristo até ao Monte das Oliveiras (Calvário) quando da sua Crucificação .
Mesmo em ruínas os locais são muito procurados como é o caso do Fórum da cidade de Roma, mas nada se procura numa Cidade Nova ou em Benfica, a não ser por razões de visita técnica de um grupo profissional.
E se pareceria que a classe profissional dos arquitectos poderia desenhar e construir de raiz e de desenho super-moderno o espaço para instalação da sua associação profissional, é curioso notar, entretanto, que Associação Nacional dos Arquitectos se instalou nos Banhos de São Paulo e que, pelo menos no bairro de Alcântara, existe ainda e bem conservado e em funcionamento o edifício dos Banhos Públicos, ideia que não morreu passados pelo menos dois milénios e que renasceu com o termalismo dos centros mundanos mas igualmente de carácter medicinal, sendo a estância termal portuguesa mais antiga (também da Europa), a das "Caldas" da Rainha, fundada pela rainha D.Leonor.
Esta situação iria ser a semente de onde nasceu e cresceu uma cidade de grande valor arquitectónico, histórico e cultural, com a sua agradável Praça Central (Fórum), de belo e antigo pavimento de vidraço, no coração da cidade, que é mercado de manhã e local de passeio de tarde, à volta da qual se desenvolve a área urbana que possui um grande parque com árvores já centenárias que resistiram ao grande vendaval de 1942, murado e com gradeamento de ferro fundido e de belo desenho antigo, situado mesmo numa das entradas da urbe e que remata a cidade relativamente ao campo e ao qual fica adjacente a mata onde anualmente se realizavam famosos concursos hípicos internacionais.
As Caldas da Rainha de Bordalo Pinheiro, foi cidade-abrigo de muitos refugiados da II Grande Guerra, que adoptaram este país como seu, e de onde derivaram muitas famílias portuguesas, como se esta cidade contasse histórias do país e do mundo, tendo ainda sido, nos anos 40 e 50, local de veraneio dos lisboetas, porquanto, para além da beleza e cosmopolitismo, abertura social e desenvolvimento, se situa na vizinhança próxima de muitas praias, sobretudo a da Foz do Arelho e de São Martinho do Porto, e não era ainda hábito, em Portugal, a procura da praia nem em férias nem sequer em fim-de-semana, o que me permitiu, ao vir para Lisboa, verificar a total paisagem "selvagem" e magnífica das praias de areais intocados, que envolvem a "Lisboa da Outra Banda" e mesmo as da Linha do Estoril, apesar da existência de todas as vilas e aldeias construídas à beira-rio e beira-mar até Cascais, já que a "Riviera Portuguesa" data apenas do início do séc.XX e que em minha opinião rivalizava, ainda nos anos 70, em qualidade e beleza com a Riviera Francesa, como se, nesse início de século, a qualidade de construir à beira-mar tivesse idêntica qualidade e preocupação de diálogo terra-montanha-mar e até formas arquitectónicas próximas.
Note-se entretanto que o "hábito de férias", excepto as escolares, também é bastante recente e sobretudo para as classes mais ricas, o subsídio de férias só foi instituído em 1936 em França e só no fim do séc. XIX se instaura o conceito de férias de beira-mar, mas apenas por razões de saúde e, quanto a esta situação lembremos o grande filme italiano “Morte em Veneza” do realizador Visconti, que retrata bem essa situação.
Sempre a Natureza esteve presente e perto do olhar do homem, mesmo a mais delicadamente construída em situações singulares desde os Jardins de Smiramis ou Jardins Suspensos da Babilónia, porque o homem nunca se divorciou da beleza a que ligava sempre a sua vida às dádivas celestes.
Também os Jardins Bíblicos do Éden ou do Paraíso têm sido objecto de interesse da arqueologia, afirmando-se que se situariam na região onde se implantou a primeira cidade de Ur na Caldeia e onde nasceu a "escrita", onde teve origem a Civilização de onde viemos, onde Noé teria construído a Arca e São Pedro rezou, onde teria existido a Torre de Babel e por onde passaram Abraão e Rebeca mulher de Isaac (Nahor), onde teriam nascido os Reis Magos, essa fértil Mesopotâmia entre o Tigre e o Eufrates, também denominada Babilónia "Império do Homem" em que reinava Nabucodunosor.
Na Bíblia Iraque significa Terra de Shinar e Terra de Raízes Profundas, zona da terra actualmente denominada Iraque como tendo sido o centro do início mais recuado da Civilização do homem, berço civilizacional que os homens não têm a menor relutância em tentar apagar do mapa, por não saberem que valor tem a memória dos homens e como a conservar ou e re-construir em vez de, simplesmente, dizimar.
A natureza esteve sempre presente e às portas da cidade, como é o caso do local onde Cristo meditou antes de ser crucificado: o Monte das Oliveiras.
Lisboa – Bairro de Santo Amaro e Olivais Norte – Encarnação
Maria.Celeste.d'Oliveira.Ramos
com a colaboração e imagens de António Baptista Coelho